quinta-feira, 7 de março de 2024

Reunião de (con)domínio

    Fim de tarde de Março, marçagão.

    Soturnamente contemplo ao longe as nuvens que, neste fim de tarde, açoitadas por Éolo, cavalgam céleres, num tropel desenfreado, a linha do distante horizonte. Em pano de fundo, o espaço sideral, tela dominada hoje por tons plúmbeos - espargida porém, aqui e ali, por laivos ígneos de um encarnado menstrual. Toda a cena prenuncia e antecipa o que em breve há-de vir; o breu lúgubre de uma noite tempestuosa, primeva, redentora e baptismal. Alheias a este premonitório cenário, simultaneamente aterrador e fascinante, as pessoas apressam-se, aos magotes, no regresso a casa à medida que o excelso Hélio descreve em arco, impassível, a sua jornada contínua confundindo-se, a espaços, com a turba gasosa no seu trajecto, paulatino e inexorável, para lá do horizonte. Assim é desde tempos imemoriais numa escala de grandeza que a brevidade humana não consegue sequer aflorar.

    Debruçado sobre a lareira, partido à altura do ventre numa pose a fazer lembrar Rodin, sinto o peso incomensuravelmente esmagador destas e doutras semelhantes cogitações que me assaltam e inquietam o espírito. Nos antípodas de toda esta metafísica, sugado à terra que nem maçã de Newton, vem-me agora à cabeça a reunião de ontem de condóminos aqui do prédio que culminou em cenas pouco edificantes de peixeirada.

(Neste ponto, socorrendo-me de extensa parentética, convém aclarar - devida vénia aos muitos que têm no Mar o seu sustento e modo de vida através da apanha, recolha e comércio laborioso das suas oferendas diárias - a expressão peixeirada, dizia, assumindo um carácter marcadamente pejorativo, não pretende aqui acarretar qualquer desprimor para essa mui nobre, digna e ancestral actividade cujo fruto do trabalho aprecio particularmente; mas, algures no tempo, convencionou-se dizer assim, pronto, quando um cordato e salutar esgrimir de argumentos entre partes, elevando-se as vozes, depressa se transmuta em nada edificante espectáculo de berraria a roçar, não raro, a boçalidade e o insulto; fim de).     

    Ora, a reunião de ontem, entre gente dita civilizada - a páginas tantas, não havendo consenso sobre uma qualquer minudência burocrática aquando da lavra da bendita acta - descambou rapidamente em peixeirada e não consigo, revivendo agora a lamentável cena, reprimir um esgar cínico de repúdio, nojo e descrença no bicho Homem. Ah, no grande esquema das coisas, como é ilusória a importância que alguns espécimes humanos julgam ter! Montados no vil metal, intitulam-se, autocraticamente, acima dos demais, humilhando e espezinhando os seus pares! Valha-nos Cronos, o grande equalizador, que tudo e todos submete, sem discriminação, a seu bel-prazer!  

    No fim, vociferados uns impropérios e trocados uns olhares lancinantes de ódio entre as partes em contenda, lá se refrearam os ânimos e, dado o adiantado da hora, dissolveu-se a excitada assembleia rumando cada qual aos respectivos aposentos, sem que muito de substância tenha ficado decretado.

    E, puta que pariu!, tendo participado desta agremiação muito mais espectador que interventivo, ocorre-me agora que a tragicomédia da existência resume-se a isto mesmo; eis o Homem, esse milagre evolutivo bípede, pleno de contradições, concomitantemente capaz de sublime grandiosidade - arte, ciência, reinvenção - e da mais vil, execrável e abjecta baixeza para com o seu semelhante (conflito, guerra, destruição)!

    A percussão da chuva, abundante lá fora, reclama-me e prende-me o olhar e num esforço para vencer a penumbra, vislumbro, através das vidraças, duas silhuetas - aparentemente díspares em idade, estatura e condição - rua acima, desafiando curvadas a intempérie e a escuridão. Mais adiante na rua e agora sob a luminária pública, o quadro planta-se mais nítido a meus olhos; mãe e filha, progenitora e prole, braço no braço, amparando-se mutuamente, fustigadas pela chuva, avançam determinadas num esforço derradeiro para recolher a casa. Sinto um calafrio percorrer-me a espinha. No conforto do calor providenciado pela lareira todo o meu corpo estremece e, ao contemplar a cena, reacende-se em mim uma ténue centelha de fé e esperança na humanidade.  

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

O Senhor J.

O Senhor J. morreu. Era um octogenário velhaco.

E não vale a pena tentar branquear, recorrendo a eufemismos, agora que já não está entre nós, os vivos, o carácter do velho homem; nem a provecta idade da partida lhe confere repentinamente a aura de santo como é de bom tom ou politicamente correcto (como se diz agora) nestas circunstâncias. Ora este escriba é partidário do Lopes e não do Magalhães, pelo que as coisas são como são e este, no que me foi dado conhecer porque, por imposição das circunstâncias, com ele privei nos seus derradeiros anos, não era, de todo, um homem bom. Ainda assim, não raro, instilava-me pena; um homem assim, a acreditar em Gasset, só pode ter sido a determinada altura do seu percurso vítima de inusitadas circunstâncias e, amiúde, entretinha-me a efabular qual o momento exacto ou quais as circunstâncias específicas que fizeram o velho azedar. Sim, porque li, há tempos e algures, uma daquelas máximas que muitas vezes se encontram nos almanaques, esta porém, estranhe-se, atribuída ao grande Cícero, que comparando o homem ao néctar dos deuses, postulava: "os homens são como os vinhos; a idade azeda os maus e apura os bons" (e as mulheres, acrescente-se, a bem da paridade e inclusão!).

Pouco se conhece da sua vida privada - o velho esforçou-se, em vida, por a manter assim, privada. Porém, aqui no despacho, sempre correu à boca miúda, que a sua primeira e única esposa terá morrido, há várias décadas, em aparatoso acidente de viação onde este não terá sido isento de culpa; o que parece indisputável, afirmam os colegas mais velhos, é que este era o condutor do malfadado automóvel e, acrescentam - não sem tentar, em vão, ocultar uma pinga de um certo regozijo simultaneamente mesquinho e macabro - estaria fortemente etilizado no momento do sinistro. Os tempos eram outros e não consta que estes factos se tenham alguma vez dado como provados no tribunal dos homens (já a consciência do próprio, a ajuizar pelo que aconteceu depois, parece ter sido neste caso Juiz, Júri e Carrasco!). Verdade ou não este detalhe, não de somenos, já se passaram, como se disse, décadas e certo é que o velho enviuvou muito cedo e ficou com a filha bebé do casal a cargo pela vida fora. Dado este estado de coisas, não é difícil, até para o mais insensível dos mortais, extrapolar o que tal episódio traumático terá despoletado na vida do então jovem homem. Nunca voltou a casar ou sequer se lhe conheceram outras relações amorosas sérias ao longo da vida. Sabe-se também que a filha sempre viveu debaixo da asa do pai pelo que facilmente se depreende que a culpa e o remorso terão tido um peso insustentável, porém determinante, ao longo desta triste existência.

O Senhor J. foi um dos últimos paladinos de um certo mundo empresarial português entretanto extinto, ou, se ainda não extinto, quero acreditar, pelo menos decrépito e em desuso a bem da desenvoltura dos tempos. Um mundo de salas imensas de mobiliário de mogno, maciço, férreo (como férrea era a vontade das gentes de então), doravante paulatinamente substituído pelo descartável Ikea e conceito open space. Um mundo corporativo que teve o seu apogeu, especulo, algures nos anos 80 onde, na minha área de actividade que bem conheço, labutavam legiões e cada qual tinha uma posição ou tarefa muito específicas; havia até quem tivesse como papel único no tecido da firma cuidar de que não faltassem bolos e chá em horário de expediente aos demais! Qual Bogart ou Delon, fumava-se a toda a hora.

O Senhor J. não evoluiu e obstinadamente arrastou consigo bem pelo século XXI adentro os ritos e rituais de tempos idos. Sempre ao volante da sua berlina (nos últimos tempos - não terá sido sempre assim - uma façanha digna de análise escatológica!), chegava ao escritório religiosamente todos os dias às 10:00, jornais debaixo do braço, um generalista e um desportivo invariavelmente; de seguida, atravessando o escritório, atirava um lacónico "bom dia" aos presentes e depois encerrava-se no seu gabinete, folheando os jornais entre sucessivos cigarros. Por volta do meio-dia, presenciei bastas vezes outro ritual; o do Whisky, nos últimos tempos bastante aguado por meio de gelo, que o peso dos anos há muito já se fazia notar. Ainda assim, não prescindia do "diluente" como lhe chamava, "para fluidificar o sangue". Nunca soube dactilografar ou utilizar um computador;  manteve toda a vida uma secretária cuja principal, se não exclusiva, atribuição era passar a email os manuscritos daquilo que pretendia ver transmitido aos clientes internacionais. Depois de dactilografadas e transmitidas as mensagens - até há não muitos anos por fax e, mais recentemente sabe-se lá por que artes mágicas!, por  email - exigia apresentação de cópia impressa em papel que relia e equilibrava depois sobre a sua secretária em duas ou três pilhas contíguas que, com o desfiar dos meses e anos, iam tomando dimensões consideráveis numa espécie de mini-arranha-céus de papel. Até o inglês, aprendido algures lá fora nos anos 60 e 70, idioma comum no comércio internacional de que se servia para comunicar com o estrangeiro, era datado, shakespeariano, e, não raro, imperceptível para alguns!

Fui dos (muito) poucos a estar presente e participar nas suas exéquias numa lúgubre igreja no coração do Porto; o que um homem semeia em vida colhe até após o solitário acto de morrer.

Do Senhor J. resta - além de já parcas memórias que o devir do tempo se encarregará de dissipar - um retrato a óleo, de generosas dimensões, que pontifica agora numa das paredes aqui do ofício, à laia de homenagem ao co-fundador da firma. De qualquer ângulo que se olhe parece seguir-nos com o próprio olhar, constante, imutável, imperecível…

quarta-feira, 20 de setembro de 2023

Pensées

At the end of the day, we're all just people trying to make it through the absurdity of life the best we can.

terça-feira, 15 de março de 2022

A caçada

Quando eu soube que hei-de morrer, entrei imediatamente em pânico. 
Isto, se não me ilude a memória pela névoa dos anos, deve ter acontecido tinha eu uns cinco ou seis de idade quando o meu avô levou-me, pela primeira vez, à caça. Era uma manhã fria de Outono e uma fina película de cristais, depositada durante a noite, cobria as forragens do gado num lençol branco a perder de vista. O halo da respiração, doutra forma invisível, confirmava a temperatura ambiente. A cada exalação parecia que pedaços de alma se separavam irremediavelmente dos corpos. Naquela fria manhã, este cisma acontecia repetidamente diante dos meus olhos, não só a homens como também a outros animais, pelo que a minha lógica infantil logo formulou secretamente o axioma "ser que respira tem alma". É por esta misteriosa comunhão que todos se chamam animais porque providos de "anima" como viria a aprender mais tarde nas latinidades. Nem o frio arrefeceu a perspectiva de uma aventura em companhia do meu avô. Ainda o sol era um embrião no ventre das montanhas, já o leite borbulhava no fervedor suspenso nos malabarismos da trempe sobre o brasido reanimado da véspera. Antes, já a Pinta(*) tinha oferecido as suas tetas à carícia das mãos, simultaneamente vigorosas e delicadas, do avozinho. Da fonte inesgotável do úbere do meigo animal brotava diariamente, em jorros, o precioso néctar branco e morno que desjejuava miúdos e graúdos. Anos antes da pasteurização e da desnatação serem processos industriais corriqueiros, esta oblação repetia-se pelo ano fora, ao amanhecer e ao anoitecer, excepto no período imediato ao nascimento de um novo vitelo. Depois de bebido o leite, com café para os adultos, e de comida uma grossa fatia de sêmea de trigo com queijo, se o havia, e marmelada, o avô cintou-se com a cartucheira e cingiu o velho arcabuz a tiracolo. Seguimos depois pelos prados fora - o patriarca à frente, o neófito logo colado na peugada - tentando minimizar o ruído único do gelo que se quebrava, a cada passo, sob as botas. A liturgia da caça exigia estes silêncios absolutos para surpreender as presas: uma ou outra perdiz, aquáticas como patos e narcejas, as ocasionais (por migratórias) abecuinhas, às vezes um coelho... A comunhão perfeita entre os homens e a natureza era, a espaços, subitamente perturbada pelo trovão que saía da boca da caçadeira, em forma de chuva plúmbea, por vezes fatal para a passarada. Foi a seguir a uma dessas troadas, que feriu de morte uma colorida abecuinha apanhada a pastar despreocupada entre os vinhedos, que eu primeiramente tomei contacto com a morte. Até aqui sempre me haviam ocultado o fenómeno, poupando-me a velórios de vizinhos ou familiares, por meio de invenções várias. Depois do estrondo, o estúpido pássaro não mais se mexeu. Perante o meu olhar atónito, o avô encorajava-me a cobrar a presa, troféu de caça que mais tarde serviria para conforto do estômago. Ao fim de uns minutos de descrença, automaticamente saindo do transe, aproximei-me pé-ante-pé do pobre bicho e levantei-lhe do chão o cadáver ainda quente. Entre mãos levei-o à presença do avô que assistia, sorrindo, a toda a cena. Naquele momento, desejei a (im)possibilidade de odiar o ceifeiro de vidas, o assassino de pássaros, por detrás do homem. Não! Nem este episódio pôde manchar jamais a imagem imaculada que sempre guardarei do avô. Cozinhou-se o pássaro e outras presas aladas que, naquele dia, conheceram sorte idêntica sucumbindo à pontaria cada vez mais escassa do velho homem, já que a vista ia acusando o peso dos anos, falindo gradualmente; felizmente para as aéreas o avozinho não mais ser exímio atirador; infelizmente para o próprio e para mim que assistia impotente à degradação natural da carne amada e, por meio destas e doutras vivências, ia percebendo a mecânica subtil da vida. Dispostos ao redor da mesa, fez-se um invulgar silêncio de morte e, perante a minha recusa em comungar dos pássaros, o avozinho adivinhou finalmente as inquietações do meu espírito de criança. Tentou, em vão, tranquilizar-me, explicando-me o jogo de luz e sombras da vida e da morte, e a atroz engrenagem que faz, de uns, presas e, de outros, predadores. Não sei se nesse dia aprendi a lição. Sei, isso sim, que o velho homem nunca mais caçou. (*) a Pinta era uma amiga quadrúpede a quem só faltava, como dizia o avô, o dom da fala. Chamar-lhe aqui vaca seria um insulto para o nobre animal. Outras há não tão nobres e com metade das patas. Mas isso é outra história.

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Avô é pai duas vezes

O meu avô materno foi um gigante que errou por este mundo de joelhos.
Há pessoas assim, discretos colossos maiores que a vida, e depois há os outros, os anões que se agigantam, caminhando sobre ilusórias andas, no espectáculo circense da vida.
O avozinho nunca recorreu ao artifício das pernas de pau.

Hoje lembrei-me dele, não que tal coisa seja rara, muito pelo contrário, mas, há momentos, ao contemplar a clausura das labaredas, encerradas no moderníssimo recuperador de calor cá de casa, tomou-me, sem aviso, a saudade das frias manhãs de Outono passadas a assar castanhas na lareira de pedra da velha casa, essa sim, genuína e plenipotenciária de ostentar o nome.
Quis uma sucessão de acasos que, esta noite, eu tenha por companhia única uma gata branca e por banda sonora a nostálgica percussão da chuva, abundante lá fora. Acendi a lareira, pela primeira vez na estação, na esperança ténue de dissipar o frio causado pela ausência de vivalma e muni a mão direita de indulgente copo de malte.
E, na contemplação das chamas, ouço agora o longínquo crepitar das castanhas da minha infância, tisnadas pela imolação altruísta das cepas de videiras velhas, e lá está o homem alto, apoiado sobre um banquinho de madeira, produto das suas hábeis mãos, a remexer o brasido com um graveto e a povoar a minha imaginação pueril de histórias de bichos e quimeras de África, da África colonial que tanto amava. Façanhas e desventuras de desterrado em Lourenço Marques, como assim se chamava a capital provincial de Moçambique quando o avozinho por lá viveu. Agora que bóiam à tona da minha mente estas inefáveis memórias de infância, imprimem-se-me, em ambas as retinas, as imagens vívidas do imenso espólio de objectos, trazidos ocultados à laia de contrabando dessa África onírica, que havia na velha casa: chifres de impala convertidos em bizarros pássaros pela mão expedita de pretos, que nisto são exímios artesãos, diáfanas freiras mumificadas nas presas de marfim de um qualquer elefante abatido pelo predador branco na refrega da savana, sendo esta particular efígie sinal inequívoco de miscigenação; existiam ainda inúmeras peles de grandes felinos, de tigres e afins. O tempo encarregou-se de lhes dar descaminho. Vivem agora tão-somente nas minhas memórias.

Foi o meu avô que me ensinou a amar a terra.
"Um homem pode não ser farto de oiros e pratas, não possuir no banco a segurança de gorda conta a prazo de vários dígitos, mas pode-se considerar afortunado se conseguir arrancar, de um pedacito de terra a que possa chamar seu, o sustento frugal do pão nosso de cada dia" - repetia-me inúmeras vezes, no intervalo dos vigorosos golpes de enxada com que, carinhosamente, preparava o ventre da terra para receber o sémen do grão. Nestas pausas, eu corria industrioso a chegar-lhe o lenço branco com que enxugava o suor que lhe escorria abundante da fronte ou o cântaro de barro cru que conservava a frescura da água, amenizadora da sede.
Juntos corremos campos e montes, rios e vales; a maior parte das vezes porque a isso obrigava a labuta do campo, outras por diversão como nas raras vezes do ano em que nos levava à praia no velho Ford Taunus - que o mar era longe, o carro cansado e as economias poucas - e no caminho de regresso parávamos a saciar-nos, sob o abrigo frondoso de uma centenária árvore, com a frescura de um melão ou melancia comprados a um qualquer vendedor ou vendedeira, destes ocasionais que se encontram à beira da estrada quando a época é abundante de frutas.

Disse-te, um dia, na pureza do meu coração de menino de dez anos, que queria morrer no mesmo dia que tu. Que nos lançaríamos juntos nessa nova aventura de desbravar o desconhecido dos mundos d'além morte. Tu foste; eu, porém, fiquei. Encontrar-nos-emos um dia?

Avozinho, lá onde estiveres agora, perdoa-me a insuficiente homenagem que (e já se apodera de mim a comoção), por mais que me esforce, pecará sempre por escassa. Jamais poderá aflorar o gigante que foste aos olhos deste que para sempre te ama. E tu, avô, és das poucas pessoas que ainda arrancam baptismais lágrimas de contrição ao meu, entretanto por força de mundanas circunstâncias, empedernido coração.
Olho o teu retrato.
Choro agora.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Retalhos da minha aldeia

Lembram-se deste?
Pois bem, a história é simples e seria até hilariante não fora o protagonista um velho amigo de infância. Diagnosticaram-lhe esquizofrenia, toma lá meia dúzia de drunfos para conter as vozes interiores, virou asceta - barba pelo peito, cabelo a ocultar o garrote, sandálias a condizer - e percorre diariamente, sol-a-sol, animado por uma qualquer invisível força interior - as vozinhas outra vez - as ruelas do povoado para estupefacção de uns, temor de outros, desprezo de todos, à passagem de tão volumoso e sinistro vulto.
Ainda agora passou a passos largos ao portão da ti'Alcina, curandeira de renome com créditos firmados até nas aldeias vizinhas, dois "credo em cruz" acompanhados por igual número de benzeduras - protecção divina nunca é de mais num nítido caso de possessão demoníaca como este - e seguiu caminho pelo carreiro da Fonte do Cão acima adentrando-se pelo mato qual bicho acossado por matilha de cães de caça. Só volta ao fim do dia. O que faz nos entretantos permanece um mistério para a populaça e é mote das mais acesas teses defendidas com vigor, inflamado por sucessivos copos de tinto, na taberna do Vadio.
A aldeia é cruel para quem é diferente. Que o diga o Danielzinho, bicha com muito gosto e prazer - o dele, cruzes credo!!! Quando saiu do armário, como é moda agora dizer-se, foi motivo de chacota geral perante o desgosto dos incrédulos progenitores, julgado sumariamente no areópago do Vadio. A mãe talvez já desconfiasse, no seu íntimo, das inclinações do rapaz e, corre à boca miúda, não terá sido alheia à definição sexual, chamemos-lhe assim, da criança já que, desde tenra idade, gostava de lhe vestir trajes de rapariga, que seu ventre até então só parira varões, e este mais novo queria-se menina.

Reunião de (con)domínio

     Fim de tarde de Março, marçagão.      Soturnamente contemplo ao longe as nuvens que, neste fim de tarde, açoitadas por Éolo, cavalgam c...