Fim de tarde de Março, marçagão.
Soturnamente contemplo ao longe as nuvens que, neste fim de tarde, açoitadas por Éolo, cavalgam céleres, num tropel desenfreado, a linha do distante horizonte. Em pano de fundo, o espaço sideral, tela dominada hoje por tons plúmbeos - espargida porém, aqui e ali, por laivos ígneos de um encarnado menstrual. Toda a cena prenuncia e antecipa o que em breve há-de vir; o breu lúgubre de uma noite tempestuosa, primeva, redentora e baptismal. Alheias a este premonitório cenário, simultaneamente aterrador e fascinante, as pessoas apressam-se, aos magotes, no regresso a casa à medida que o excelso Hélio descreve em arco, impassível, a sua jornada contínua confundindo-se, a espaços, com a turba gasosa no seu trajecto, paulatino e inexorável, para lá do horizonte. Assim é desde tempos imemoriais numa escala de grandeza que a brevidade humana não consegue sequer aflorar.
Debruçado sobre a lareira, partido à altura do ventre numa pose a fazer lembrar Rodin, sinto o peso incomensuravelmente esmagador destas e doutras semelhantes cogitações que me assaltam e inquietam o espírito. Nos antípodas de toda esta metafísica, sugado à terra que nem maçã de Newton, vem-me agora à cabeça a reunião de ontem de condóminos aqui do prédio que culminou em cenas pouco edificantes de peixeirada.
(Neste ponto, socorrendo-me de extensa parentética, convém aclarar - devida vénia aos muitos que têm no Mar o seu sustento e modo de vida através da apanha, recolha e comércio laborioso das suas oferendas diárias - a expressão peixeirada, dizia, assumindo um carácter marcadamente pejorativo, não pretende aqui acarretar qualquer desprimor para essa mui nobre, digna e ancestral actividade cujo fruto do trabalho aprecio particularmente; mas, algures no tempo, convencionou-se dizer assim, pronto, quando um cordato e salutar esgrimir de argumentos entre partes, elevando-se as vozes, depressa se transmuta em nada edificante espectáculo de berraria a roçar, não raro, a boçalidade e o insulto; fim de).
Ora, a reunião de ontem, entre gente dita civilizada - a páginas tantas, não havendo consenso sobre uma qualquer minudência burocrática aquando da lavra da bendita acta - descambou rapidamente em peixeirada e não consigo, revivendo agora a lamentável cena, reprimir um esgar cínico de repúdio, nojo e descrença no bicho Homem. Ah, no grande esquema das coisas, como é ilusória a importância que alguns espécimes humanos julgam ter! Montados no vil metal, intitulam-se, autocraticamente, acima dos demais, humilhando e espezinhando os seus pares! Valha-nos Cronos, o grande equalizador, que tudo e todos submete, sem discriminação, a seu bel-prazer!
No fim, vociferados uns impropérios e trocados uns olhares lancinantes de ódio entre as partes em contenda, lá se refrearam os ânimos e, dado o adiantado da hora, dissolveu-se a excitada assembleia rumando cada qual aos respectivos aposentos, sem que muito de substância tenha ficado decretado.
E, puta que pariu!, tendo participado desta agremiação muito mais espectador que interventivo, ocorre-me agora que a tragicomédia da existência resume-se a isto mesmo; eis o Homem, esse milagre evolutivo bípede, pleno de contradições, concomitantemente capaz de sublime grandiosidade - arte, ciência, reinvenção - e da mais vil, execrável e abjecta baixeza para com o seu semelhante (conflito, guerra, destruição)!
A percussão da chuva, abundante lá fora, reclama-me e prende-me o olhar e num esforço para vencer a penumbra, vislumbro, através das vidraças, duas silhuetas - aparentemente díspares em idade, estatura e condição - rua acima, desafiando curvadas a intempérie e a escuridão. Mais adiante na rua e agora sob a luminária pública, o quadro planta-se mais nítido a meus olhos; mãe e filha, progenitora e prole, braço no braço, amparando-se mutuamente, fustigadas pela chuva, avançam determinadas num esforço derradeiro para recolher a casa. Sinto um calafrio percorrer-me a espinha. No conforto do calor providenciado pela lareira todo o meu corpo estremece e, ao contemplar a cena, reacende-se em mim uma ténue centelha de fé e esperança na humanidade.