Quem me dera viver de novo a insónia nervosa das vésperas do exame de condução; sentir a satisfação incontida do prazer de guiar o meu primeiríssimo carro, comprado, em segunda-mão, com o entusiasmo diligente do primeiro emprego; o arroubo do primeiro beijo furtado; a excitação túmida da primeira penetração, em que, por breves instantes que souberam a eternidade, fomos um só em comunhão plena...
Hoje em dia, caminho sonâmbulo por entre outros meio-vivos que, como eu, vendem diariamente, corpo e mente, em troca de um vil punhado de óbolos; que se prostituem pela mesmíssima quantia que entregou o Redentor ao martírio cruciforme, e sinto-me a mais rasca noviça dessa linhagem antiga das putas de beira de estrada.
Queria ter a dose de coragem necessária para arrancar-me a esta quietude de carvalho secular, feita de raízes profundas no que é correcto, e gritar, em cacarejos de galo madrugador, liberdade. Queria possuir a solidão altiva de um condor andino, vogando no vazio, ignorante de Newton e das suas leis, que, na sua felicidade néscia, cumpre os seus desígnios de pássaro. Despojar-me dos meus grandiloquentes nadas, despir-me dessa peçonha cinzenta que me tolhe o raciocínio e responde pelo nome de tu, e partir...
Bem sei que tenho o mesmo temperamento impossível dos grandes poetas mas nem gota, nem traço, de semelhante genialidade.
O teu único problema, Demóstenes, - grita-me a consciência - é revestires-te, à laia de armadura de cavaleiro prestes a entrar em torneio medievo, da impenetrabilidade e robustez de um couraçado alemão, quando, bem sabes, te corre nas veias a mesma terracota podre das legiões de Qin, impávidas na sua trágica mudez milenar.
Escorrem-me da pena, a gaguejar, trémulas linhas desprovidas de sentido, automáticas, numa espécie de psicografia desconexa, à medida que as trevas dão lentamente lugar à baptismal luz do dia para, depois do astro-rei descrever no céu um arco perfeito, tudo recomeçar de novo, uma vez e outra, e outra ainda, numa ciclicidade processual repetida à infinita potência.
Eu, porém, amanhã já não estarei cá e o tempo, inclemente, encarregar-se-á de esbater gradualmente, na memória dos que me são próximos, os parcos vestígios da minha passagem por aqui, até que a noção do que fui se perca por completo na bruma do devir.
Hoje em dia, caminho sonâmbulo por entre outros meio-vivos que, como eu, vendem diariamente, corpo e mente, em troca de um vil punhado de óbolos; que se prostituem pela mesmíssima quantia que entregou o Redentor ao martírio cruciforme, e sinto-me a mais rasca noviça dessa linhagem antiga das putas de beira de estrada.
Queria ter a dose de coragem necessária para arrancar-me a esta quietude de carvalho secular, feita de raízes profundas no que é correcto, e gritar, em cacarejos de galo madrugador, liberdade. Queria possuir a solidão altiva de um condor andino, vogando no vazio, ignorante de Newton e das suas leis, que, na sua felicidade néscia, cumpre os seus desígnios de pássaro. Despojar-me dos meus grandiloquentes nadas, despir-me dessa peçonha cinzenta que me tolhe o raciocínio e responde pelo nome de tu, e partir...
Bem sei que tenho o mesmo temperamento impossível dos grandes poetas mas nem gota, nem traço, de semelhante genialidade.
O teu único problema, Demóstenes, - grita-me a consciência - é revestires-te, à laia de armadura de cavaleiro prestes a entrar em torneio medievo, da impenetrabilidade e robustez de um couraçado alemão, quando, bem sabes, te corre nas veias a mesma terracota podre das legiões de Qin, impávidas na sua trágica mudez milenar.
Escorrem-me da pena, a gaguejar, trémulas linhas desprovidas de sentido, automáticas, numa espécie de psicografia desconexa, à medida que as trevas dão lentamente lugar à baptismal luz do dia para, depois do astro-rei descrever no céu um arco perfeito, tudo recomeçar de novo, uma vez e outra, e outra ainda, numa ciclicidade processual repetida à infinita potência.
Eu, porém, amanhã já não estarei cá e o tempo, inclemente, encarregar-se-á de esbater gradualmente, na memória dos que me são próximos, os parcos vestígios da minha passagem por aqui, até que a noção do que fui se perca por completo na bruma do devir.
40 comentários:
Este desabafo é divinal! Sinto-me esmagada pelo peso de cada uma das suas palavras... o Demóstenes é um deus, eu sou uma pobre e pedinte criatura que se esconde sob o manto da vergonha, pela pobreza da minha escrita, por não conseguir alançar este dom de registo e de plenitude cultural.
Comparo este modo de comunicar ao Eden com muitos tesouros, muitas armadilhas. Sinto-me Eva perante a serpente, mas mais alertada do que ela, num esforço que me é penoso, nem sempre colho a maçã, espero que caia madura, sumarenta e deliciosa no meio regaço, só no meu...
Voltar ao nervosinho inicial, à ansia pela primeira vez... gosto tanto. Deixa-me mal disposta, mas gosto. :')
Maria Teresa,
Obrigado pelos rasgados elogios.
Não me chame de deus. Já me dá tanto trabalho tentar ser um homem decente...
S*,
Em tempos tive uma namorada que chamava a essa panóplia de sensações borboletas no estômago.
Demóstenes, sem rodeios e de uma forma simplista bem própria da Complicações apenas te posso dizer que a vida é aquilo que fazemos dela. Cada um dos dias tem 24 Hora e se as vivermos condenando a nossa existência, não estaremos a fazer mais do que antecipar uma morte lenta.
A vida todos os dias dá-nos motivos para sorrir, para tal basta absorver o que de melhor ela tem para dar. Ela é feita de emoções que nos fazem sentir vivos basta estarmos receptivos e agarrar em cada momento a oportunidade de ser feliz. Armaduras, mascaras e resistências são algo a que recorremos para nos proteger da vida que tem tanto de boa como de cruel. É preciso coragem para viver, mas acredita que compensa. ;)
Acredito que a vida retribui tudo o que damos. Se espalharmos felicidade, é felicidade que recebemos. Por mais que custe sorrir, se o fizeres, ainda que forçado, poderás ver retribuírem-te sinceros sorrisos e isso alimenta a alma e faz as pessoas estarem vivas. Se tiveres que caminhar procura quem está vivo e não os que vivem por metade ;)
Sou uma optimista por natureza que combate qualquer tentativa de cair na tristeza. Vamos dai… dá cá a mão que puxo-te um bocadinho. ;)
Demóstenes,
Sem o génio com que escreves, escrevi linhas de pensamento similares há muito pouco tempo. É tremendo o conflito, o eterno conflito, entre razão e emoção. E muitas coisas nesta vida são metade de cada uma dessas vertentes. "Carece optar" qual das verdades fazemos nossa, mas temos de conhcer as duas. E depois ter coragem, se não tivermos a sorte do destino nos abrir uma janela de oportunidade (ou se não soubermos vê-la).
Irónico que também o teu texto me fez lembrar o Sísifo. Metades e recomeços...
Admirável Amigo:
Registo com agrado palavras suas geniais:
"...Escorrem-me da pena, a gaguejar, trémulas linhas desprovidas de sentido, automáticas, numa espécie de psicografia desconexa, à medida que as trevas dão lentamente lugar à baptismal luz do dia para, depois do astro-rei descrever no céu um arco perfeito, tudo recomeçar de novo, uma vez e outra, e outra ainda, numa ciclicidade processual repetida à infinita potência..."
Genial. Perfeito.
Com imenso respeito, estima e consideração gigantes.
Abraço amigo de parabéns sinceros pela sua escrita notável e fabulosa.
MUITO OBRIGADO pela visita.
Sempre a lê-lo atentamente...
pena
Bem-Haja, excelente e talentoso escritor.
Eu gostei.
Voltarei.
Obrigada pela visita.
Obrigado pela visita.
Uma visita que, de alguma maneira, aumentou a minha motivação.
Abraço
Paulo
Miss Complicações,
Não penses, pelo que escrevo, que sou um desistente. Muito pelo contrário; considero-me um resistente. Agradeço-te, no entanto, o comentário cheio de boas vibrações que me deixaste.
Volta sempre. O mundo precisa de pessoas positivas como tu.
(PS: hoje mesmo, ao volante para o trabalho, dei por mim a cantar o "Uprising" enquanto um sol magnífico me beijava o rosto.)
Princesa (des)encantada,
um dia explico aqui a genialidade simples (ou a simplicidade genial?) do meu processo criativo.
Passei agora pelo seu blogue e adorei ver as suas dissertações sobre o Sísifo. A mitologia Antiga (repare que grafei a palavra com maiúscula) é-me, por formação, um tema particularmente grato .
Volte sempre; estarei deste lado para acolher.
Pena,
O cavalheiro é de uma afabilidade no trato como já quase não há; coisa antiga e bonita de se ver. (Tenho observado, por aí, a forma digna, respeitosa e afectuosa como vai enriquecendo a blogosfera com o seu cunho pessoal, através dos seus comentários).
Muito me honra a sua visita e os seus encómios.
As portas estarão sempre abertas à sua espera.
Papoila,
Continue a sonhar que, como diz o poeta, o sonho comanda a vida... e a voltar.
Obrigado pela visita.
Já ouvi uma psicóloga afirmar que a vida é que comanda os sonhos...
Ter-se-à António Gedeão enganado?
Paulo Sempre,
De Paulo(*) só tem o nome, já que, a ajuizar pelo pouco que tive ainda oportunidade de ver no seu blogue, o amigo (permita-me a ousadia de dirigir-me assim, familiarmente, à sua pessoa) revela magna generosidade e maturidade de pensamento invulgares.
(*) etimologicamente do adjectivo Latino paulus, -a, -um - pequeno
Olá, obrigada pela visita..
De uma maneira ou doutra, recomeça-se...
Resta saber se há a coragem de recomeçar do zero...
Até já
Beijos e abraços
Marta
Venho conhecer este espaço, onde de manto de loquaz se esconde, para lançar o que lhe apetecer, pois assim nos permite a blogosfera.
Gosto da ausência de monotonia no que escreve e…. continuarei a seguir-lhe a pena .
Quero também agradecer a visita que de si recebi e dizer-lhe que será sempre com agrado que registarei o seu regresso.
Na verdade, quando escrevo, nunca tenho uma intenção gramatical ou linguística premeditada, procuro apenas que as palavras, sejam elas quais forem, digam exactamente aquilo que sou e o que sinto, com a musicalidade própria das emoções. O resto, bem o resto são arranjos apenas.
Um abraço
O problema é termos consciência, não fosse isso...
O problema caro Demóstenes, é estarmos vivos...
maria teresa, agrada-me a ideia de ser citada...
Agradecendo a visita encontro um texto repleto de vivências e de constatacções do dia a dia.
A passagem pelo planeta é sempre medida pelo tempo que espera pela partida de nós.
Gostei
beijinho
Chama-se a isto escrever bem! voltarei.
Bjs
Grato pela visita. O teu blog transmite sufoco e ânsia. Tentador. Um resistente, conforme te defines algures nos comentários.
A propósito de te revestires da impenetrabilidade e robustez de um couraçado alemão, só a título de provocação e também de experiência pessoal, o Bismarck foi ao fundo e o resto da esquadra também. O que em nada compromete a validade da analogia.
FD,
Mas resistiu (e de que maneira!!!). Reza a História que foram os próprios tripulantes que o afundaram para não cair nas mãos dos ingleses.
Obrigado pela visita.
PS: Curiosamente, quando escrevi este texto, recordei-me imediatamente da tragédia do Bismarck.
Lilá(s),
Obrigado pela visita e pelo elogio.
Tentarei não desapontar em próximas entradas.
Gotadevidro,
Curioso o seu nome dado que, efectivamente, o vidro é um líquido.
Retribuo a delicadeza do beijo.
Eva Gonçalves,
Na minha opinião o problema é mais cartesiano.
Cogito, ergo sum e eu ouso acrescentar em latim macarrónico foditus (sendo que, nesta versão, o verbo esse assume o significado de estar em vez de existir).
Poder-se-á traduzir a coisa assim:
Penso, logo estou f*****
Amorfo de Melo,
O meu acrescento anterior vai de encontro à sua arguta observação.
Bem-vindo.
Maria João,
Obrigado pela visita que só enriquece este antro de autocomiseração.
Volte sempre.
Marta,
Até já.
Maria Teresa e Eva Gonçalves,
Apraz-me a ideia de proporcionar, de alguma forma indirecta, enriquecedora interacção entre os visitantes deste blogue.
Já agora, perspicaz inversão esta do verso de Gedeão.
:) ler aqui no mac's blog
(abrindo o painel para comentar...)
Eva Gonçalves,
Obrigado pela dica.
Pelo pouco que ainda vi, vale muito a pena.
ha palavras que merecem ser lidas...estas por exemplo valem a pena... parabens
IB
http://nuncafizumblog.blogspot.com
Anónimo,
Obrigado pela visita e pelo elogio.
Volte sempre.
Bom texto
Bem-vindo ao meu mar
Sobre o Bismarck: sim, sei a história. Estive a aprofundar o meu conhecimento antes de fazer o comentário. Não podia ser de outra maneira num blog com elevados padrões de qualidade. Abraço.
DEMÓSTENES...Vou oferecer-te uma medalha...
A de escritor , até me arrepiei:)
E porquê LOQUAZ FALACIOSO???
Eu gosto de fazer perguntas...
SUUUUUUUrrisinhos:)
Mar Arável,
Obrigado pela visita.
Voltarei a sulcar certamente as suas águas.
Susaninha,
Obrigado pela condecoração.
Loquaz falacioso, pareceu-me sonante...
Ah, e não te inibas nunca de perguntar!
É natural que tenhas saudades das tuas aulas de condução e do teu primeiro carro...esses andavam de verdade. Já o teu actual nao anda nem a gasóleo, nem a gasolina e muito menos a gás...Viva a era dos Flinstones.
IsaB
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