Quis Deus ou o Diabo, ou quiseram ambos, que do estranho medir de forças entre estes dois resulta a inércia que anima todos os corpos celestes e, deste modo, mantém também a grande bola azul em contínua revolução e assim se cria o equilíbrio que permite que se desenvolva, à sua superfície, a intrincada trama do teatro humano, mas, dizíamos, quis Deus ou o Diabo, que, esta noite, escura como o breu que lhe dá cor, carvão diluído pela pluviosidade abundante, servisse de cenário a um dos infelizmente muitos, demasiados, episódios trágicos que acontecem diariamente nas estradas nacionais, como a seguir passamos a contar para que este relato, ainda que fictício porque fruto tão-só da mente do relator, ainda assim, pelos motivos acima expostos, perfeitamente verosímil, provoque, em quem o vier a ler, alguns momentos de reflexão, intenção ambiciosa a que nos propomos e que se conseguida, num leitor apenas que seja, por muito felizes nos daremos, pois então terá sido alcançado o efeito desejado.
De cima para baixo seguia um automóvel, meio locomotor, por prático e cómodo, de uma vulgar família de classe média, se é que ainda há destas nos tempos que correm, sim, que as agruras e dificuldades destes tempos de agora ditam que se cave cada vez mais o fosso entre ricos e pobres, sendo cada um dos quais, pobres e ricos, cada vez mais aquilo que são e não havendo assim lugar para meio termo em coisa alguma. Deixemo-nos, porém, por agora, destas considerações ainda que muito, a este respeito, houvesse a considerar.
Retomando o relato no ponto em que o deixámos, refira-se que, em direcção oposta, ou seja, de baixo para cima, um outro veículo, cujo tripulante único ronda, em idade, uns inconscientes vinte anos, traga avidamente os quilómetros do febril trajecto de sábado à noite que desemboca invariavelmente numa qualquer discoteca ou bar da zona. Ignorantes uns do outro e desconhecedor este daqueles, por indústria de alguma das forças antes mencionadas ou de ambas, como de igual modo se aventou hipótese, interceptam-se, num cotovelo revolto de estrada, em aparatosa colisão frontal. Num segundo, tinge-se de encarnado o preto asfáltico pelo grosso sangue derramado por ocupantes de um e de outro veículo, em macabra cena de ferrarias retorcidas. Faz-se subitamente silêncio e este vácuo sonoro não augura nada de bom. Num instante o fio da vida é drasticamente interrompido. Subitamente, neste teatro de interacções da existência, actores secundários passam a desempenhar papéis principais, ou fundamentais, ou decisivos, no filme de outras existências e isto pode acontecer a qualquer um num virar de esquina, no tempo que leva um piscar de olhos.
E nós, que há não muito tempo tivemos uma vintena de anos, aprendemos que ninguém tem o direito de entrar de actor, do modo acima descrito, em película de vida alheia. Coibimo-nos tantas vezes de irromper na vida dos outros em coisas incomensuravelmente mínimas, à mesa do café ou quando nos cruzamos na rua, não vá dar-se o caso de se pensar que somos intrometidos, desejosos, no íntimo, do calor e afecto de uma palavra afável de atenção, de um simples bom-dia, ansiosos, por vezes até, que o outro repare em nós, estou aqui, e assim torne a solidão a que irremediavelmente fomos votados desde o dia em que nascemos, sozinhos nascemos e sós morreremos, menos insuportável, menos absurda, tomemos, pois então, as cautelas necessárias, e todas serão sempre poucas, para suprimir o episódio do sinistro automóvel da novela da nossa vida.
E isto já está a tomar rumos de homilia, e a nós ninguém nos encomendou o sermão, mas aflige-nos, cansa-nos até, o desperdício diário de vidas humanas, projectos e sonhos, relatado pelos jornais e televisões e assusta-nos, enquanto utilizadores das vias rodoviárias, o risco a que amiúde, só por rodar uma simples chave de ignição auto, nos submetemos.
Não se pense que, nesta história, o vilão é o jovem de vinte anos que seguia para a discoteca, que nada temos nós contra este, cuja condição também partilhamos, nem contra o propósito da sua viagem. Apenas nos queremos dirigir a esta faixa etária que também, repetimos, é a nossa, já que, estatisticamente, é a mais afectada pelo problema.
De cima para baixo seguia um automóvel, meio locomotor, por prático e cómodo, de uma vulgar família de classe média, se é que ainda há destas nos tempos que correm, sim, que as agruras e dificuldades destes tempos de agora ditam que se cave cada vez mais o fosso entre ricos e pobres, sendo cada um dos quais, pobres e ricos, cada vez mais aquilo que são e não havendo assim lugar para meio termo em coisa alguma. Deixemo-nos, porém, por agora, destas considerações ainda que muito, a este respeito, houvesse a considerar.
Retomando o relato no ponto em que o deixámos, refira-se que, em direcção oposta, ou seja, de baixo para cima, um outro veículo, cujo tripulante único ronda, em idade, uns inconscientes vinte anos, traga avidamente os quilómetros do febril trajecto de sábado à noite que desemboca invariavelmente numa qualquer discoteca ou bar da zona. Ignorantes uns do outro e desconhecedor este daqueles, por indústria de alguma das forças antes mencionadas ou de ambas, como de igual modo se aventou hipótese, interceptam-se, num cotovelo revolto de estrada, em aparatosa colisão frontal. Num segundo, tinge-se de encarnado o preto asfáltico pelo grosso sangue derramado por ocupantes de um e de outro veículo, em macabra cena de ferrarias retorcidas. Faz-se subitamente silêncio e este vácuo sonoro não augura nada de bom. Num instante o fio da vida é drasticamente interrompido. Subitamente, neste teatro de interacções da existência, actores secundários passam a desempenhar papéis principais, ou fundamentais, ou decisivos, no filme de outras existências e isto pode acontecer a qualquer um num virar de esquina, no tempo que leva um piscar de olhos.
E nós, que há não muito tempo tivemos uma vintena de anos, aprendemos que ninguém tem o direito de entrar de actor, do modo acima descrito, em película de vida alheia. Coibimo-nos tantas vezes de irromper na vida dos outros em coisas incomensuravelmente mínimas, à mesa do café ou quando nos cruzamos na rua, não vá dar-se o caso de se pensar que somos intrometidos, desejosos, no íntimo, do calor e afecto de uma palavra afável de atenção, de um simples bom-dia, ansiosos, por vezes até, que o outro repare em nós, estou aqui, e assim torne a solidão a que irremediavelmente fomos votados desde o dia em que nascemos, sozinhos nascemos e sós morreremos, menos insuportável, menos absurda, tomemos, pois então, as cautelas necessárias, e todas serão sempre poucas, para suprimir o episódio do sinistro automóvel da novela da nossa vida.
E isto já está a tomar rumos de homilia, e a nós ninguém nos encomendou o sermão, mas aflige-nos, cansa-nos até, o desperdício diário de vidas humanas, projectos e sonhos, relatado pelos jornais e televisões e assusta-nos, enquanto utilizadores das vias rodoviárias, o risco a que amiúde, só por rodar uma simples chave de ignição auto, nos submetemos.
Não se pense que, nesta história, o vilão é o jovem de vinte anos que seguia para a discoteca, que nada temos nós contra este, cuja condição também partilhamos, nem contra o propósito da sua viagem. Apenas nos queremos dirigir a esta faixa etária que também, repetimos, é a nossa, já que, estatisticamente, é a mais afectada pelo problema.
9 comentários:
A meu ver, essa faixa etária inclui o momento de definição do percurso que se vai tomar. Para tal, e para as mentes menos iluminadas (e não só), é necessário recorrer ao erro, recorrentemente, para encontrar, finalmente, o caminho certo. Infelizmente por vezes, no meio de tantos erros, comete-se o erro capital, e vai-se directamente para o destino final sem percorrer o caminho destinado. Contudo, esse salto temporal é, sobretudo o medo deste, o que nos faz dar mais valor à nossa existẽncia. Há dor, mas quando nascemos ninguém nos disse que isto ia ser um passeio.
E a tua filha, ainda não começou a conduzir, como a minha...
identificamo-nos com as vítimas, que podíamos ser nós, e muitas vezes, com quem provoca os acidentes, na maioria jovens, como dizes, porque também já o fomos... e é sim, um desperdício, danos colaterais da vida moderna...
Bom fim de semana, e se conduzires, conduz com cuidado neste tempo, porque... nunca se sabe.
Demóstenes tenho duas filhas adultas e estou sempre com o coração nas mãos. Mas há muitos acidentes que são provocados não só por excessos (velocidade, álcool, droga) mas uma grande parte acontece a pessoas que ao volante são acometidas por ataques cardíacos ou AVC'S. Digo isto com conhecimento de causa, porque trabalho num hospital e porque o meu pai teve uma paragem cardíaca ao volante.
Abraço
Carmo
Encolhe-se-me o coração perante estas situações! Por um lado porque me sinto vítima, por outro porque o meu filho se encaixa perfeitamente na tua descrição do jovem condutor... :-(
Pois, mas há que ter as vistas largas e olhar para a outra face da vil moeda. Quantas e quantas vezes o idoso que tira o carro da garagem ao fim de semana provoca o mesmo resultado que o jovem que vem da discoteca?
E a senhora de meia idade que vai a conduzir enquanto acende o cigarro?
É que dizer que os jovens são a faixa etária estatisticamente mais afectada é o mesmo que dizer que os benfiquistas são os condutores mais afectados pelas mortes nas estradas. Pudera, representam 2/3 terços do país, logo, morrem em maior número.
Abç
Deus e o Diabo não estarão fundidos num único ser?
Muito actual este texto, é bom meditar um pouco...
Excelente texto, como já vou estando habituada a ler aqui!
Apenas um pequeno comentário... reflectir não chega. Há que mudar definitivamente as atitudes e comportamentos na estrada, que possam colocar os próprios ou outros sob um risco acrescido, por arrogância, egoismo e irresponsabilidade.
Um abraço
Já proporcionou alguns momentos de reflexão, que não são demais neste assunto.
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