domingo, 1 de novembro de 2009

Dia de todos nós

Diz-se que o homem é um animal de hábitos e nisto sou muito homem.
Como toda a gente, tenho os meus (que, neste caso e contrariamente ao aforismo popular, vão construindo o monge da pessoa que sou). Como gosto de tudo mentalmente bem etiquetado e organizado, estes estão calendarizados consoante a frequência temporal com que se repetem. Assim, há-os diários, semanais e até anuais.

Aos sábados, invariavelmente, conservo a rotina de descer a pé a minha rua, cruzando-me, por vezes, com um ou outro par de velhinhas vindas do mercado que, mais vergadas pelo peso dos anos do que das mercearias, vão carpindo, reciprocamente, reumáticos e outras mazelas típicas da idade. Dirijo-lhes um lacónico bom dia ao que atiram na mesma moeda. Depois, costumo atravessar o jardim até ao quiosque mais próximo onde sou amavelmente recebido pelo sorriso alvo do proprietário. Já sabe ao que venho:
"É o jornalinho do costume e o livrinho também, não é verdade?"
"Sim, muito obrigado".
Segue-se o despertar ilusório da cafeína numa pastelaria ali perto por entre meia dúzia de letras gordas.


Todos os anos, o primeiro de Novembro, dia de todos nós, é de obrigatória peregrinação à igreja e, depois, ao cemitério, morada última de toda a carne.

Neste ponto da narrativa, convém esclarecer que tive uma educação profundamente católica que disto fez questão de honra a minha santa mãe.
Mais: com doze ou treze verdes anos, mais influenciado que iluminado por uma qualquer epifania, encerrei-me na clausura de um seminário diocesano. Voluntário aspirante a presbítero, assim a modos que à força, que havia muito gosto em que o rapaz desse padre para orgulho geral da paróquia que nisto tem o ventre seco e há muitos anos não pare nem diácono e muito menos sacerdote. Aí permaneci toda a adolescência (saberá Deus - e sei-o eu - o que isso me terá custado em termos afectivos ou emocionais) até me libertar do jugo de pressões de que eu próprio fui, simultaneamente, agressor e vítima, teria eu já uns dezanove ou vinte anos. Ainda assim, sinto-me actualmente mais devedor do que credor à sacra instituição. O balanço desta fase da minha vida é, portanto, positivo. Nesta época, foi-me incutido o gosto pelo estudo e pelo saber; mantém-se ainda, também, espólio desses tempos, o amor aos livros e à literatura que germinou e posteriormente floresceu adubado talvez pelo cheiro a mofo do fundo antigo da vastíssima biblioteca. E isto são tesouros de incomensurável brilho e excelso valor.

A frieza pétrea dos túmulos contrasta com a fertilidade e o colorido de tipos, cada qual com as suas estórias, que se podem avistar, por aqui, neste dia. Não consigo resistir a, qual David Attenborough, relatar algumas cenas dignas de tela de Bosch: à minha frente, um jovem impúbere, de face purulenta pelo acne da idade, segreda em vão explicações ao aparelho acústico de sua avó. Apetece-me rir perante o caricato da cena. Não devo. Sufoco a gargalhada e contenho-me a custo. Afinal estamos na casa do Senhor e devo respeito à veneranda S(s)enhora (à velhota e à outra, a do S maiúsculo que habita, sereníssima, o nicho dum dos altares laterais). O padre, em majestosos golpes de teatralidade, voz colocadíssima a emprestar gravidade ao rito, vai debitando o rame-rame da liturgia, indiferente ao foguetório de tossidelas, alisares de garganta, catarros e cochichos, da numerosa assembleia. Neste dia, a igreja encontra-se a abarrotar de hipócritas como eu.

Desdentadas beatas ruminam, na sua beatitude seráfica de beatas, a alvura da hóstia. E mais não digo sobre este tétrico grupo.

Repicam os sinos nas alturas do campanário o final do rito. Chove abundantemente lá fora que o São Pedro, que manda nestas coisas do tempo, não foi de modas e impossibilitou aos devotos a anual rumagem às campas e jazigos, enfeitadas, hoje como nunca noutro dia do ano, de flores, candeias e eternas saudades.

O adro, num mar de guarda-chuvas, anima-se subitamente de conversas; comenta-se a última varada de um tal de Armando num sistema democrático, já de si tão desacreditado, com o mesmo fervor com que, há instantes, se rezava a ladainha do Pai-nosso. Noutro grupo, fala-se da lavoura, em geral, ou da porca parideira que pariu a noite passada doze rosados bacorinhos, que, desgraçada, já matou três, que até no reino animal há más mães, e por aí fora, que isto é tudo gente rude, honesta porém, forjada pelo amanho diário da terra.
"Eh, rapaz, estás tão magro!"
"Ele farta-se de correr e fazer desporto" - acode imediatamente a minha mãe não vá dar-se o caso de se pensar que o moço, seu dileto primogénito, anda na droga, que por aqui semeiam-se boatos com a mesma rapidez e astúcia com que se lançam batatas à terra.

26 comentários:

ADEK disse...

Minha primeira marca aqui:P Gostei muito de ler o post! Beijinhos*

Anónimo disse...

um óptimo texto sobre o dia a dia tão importante e sobretudo sobre hábitos instaurados por vezes sem qualquer outra razão a não ser o hábito. Mas já diz o povo " o hábito faz o monge".
Abraço.

Demóstenes disse...


Adek,

Benvenuta!!!

Beijinhos

Demóstenes disse...


Louca esquizoffrenica,

Benvenuta também.

Quis jogar com a dupla significação da palavra hábito. Hábito = costume e hábito = vestimenta (do monge, vg). Pelos vistos, surtiu o efeito desejado.

Já agora, e espero que não me leve a mal a correcção, o provérbio popular é justamente:

o hábito (indumentária) não faz o monge.

Eva Gonçalves disse...

Vejo que tal como eu, também moras em meio pequeno... Já houve alguma vez uma dia de Todos os Santos em que não estivesse a chover?? Assim à partida não me lembro nenhum... eu digo até que Deus quer que o dia seja ainda mais triste para ajudar a fazer o luto...
Gostei mais uma vez do teu texto e de saber que perdemos um seminarista, mas ganhamos arguto bloguista!

Demóstenes disse...


Eva Gonçalves,

Já não moro nesta pequena terreola do meu coração mas moram os meus pais que visito com religiosa assiduidade.

Eu lembro-me precisamente do contrário; de que tradicionalmente, por estas bandas, costuma estar um calor desgraçado. Tanto assim é que o padre decretou acabar com a missa no cemitério já que, por entre o cheiro intenso da cera a arder e a comoção própria do local, havia muitos desfalecimentos e quebrantos.Um ano houve mesmo um óbito (ironia do destino).

Este ano, porém, choveu a cântaros.

Arisca disse...

Uma vez mais, muito, muito bom!
Por este andar, vou esgotar a minha reserva de elogios... Mas é por um bom motivo! ;)

Demóstenes disse...


Arisca,

Isto vindo da stôra é mais que elogio; sabe a um Satisfaz Plenamente da minha infância.

Obrigado.

S* disse...

Eu sou um animal de hábitos, mas de hábitos mais para o obcecados. No meu quarto tudo tem uma ordem...

Demóstenes disse...


S*,

Os meus hábitos têm mais a ver com rotinas do que propriamente com organização ou ordem.

Obrigado pela visita.

fd disse...

No dia de todos nós o Demóstenes não apareceu.

The best... ever.

Malena disse...

Absolutamente fantástico! Ainda dizem que não vale a pena ler os "bloguistas"! Também eu regresso à minha aldeia onde ainda sou a menina Maleninha levando na bagagem uma rígida educação em internato que, apesar de ter sido já há muito, deixou essas mesmas marcas, fundamentalmente o amor às letras. :-)

Demóstenes disse...


fd,

Obrigado.

Abraço,

Demóstenes disse...


Malena,

Bem-vinda e obrigado também!!!

Os bons hábitos devem perpetuar-se no tempo.

Lilá(s) disse...

Gostava de morar num lugar assim pequeno... e gostei do que li.

Arisca disse...

Bom,
O Satisfaz Plenamente é teu, mas continua a trabalhar para "tentares" chegar ao Excelente ;)

*beijinhos

PS: 18 valores

Lídia Borges disse...

Excelente prosa!
A meio, tive a sensação de estar a ler um daqueles nossos escritores clássicos, tal é o cuidado na linguagem e a eloquência da narrativa.

Obrigada!

maria teresa disse...

Demóstenes o eloquente, eloquência na narrativa, é isso exactamente o que sinto quando leio os teus textos e mais, embora muito bem escritos, estão "desfasados" nos tempos de acção.

Carmo disse...

Demóstenes magnífico texto!

Abraço

Carmo

Mar Arável disse...

Soberbo texto

em viagem

criativo e sincero

um diálogo de espelhos

meldevespas disse...

Bem, bem...sou debutante neste sítio e devo dizer-te que fiquei presa à tua escrita. Amei.
Os hábitos maus ou bons, podem n fazer o monge, mas moldam-no ahh isso podes ter a certeza.
Se não te importas vou voltar
Beijinho

Demóstenes disse...


meldevespas,

Bem-vinda e obrigado!

Perde-te por aqui à vontade quando quiseres. Tenho todo o gosto.

Mª João C.Martins disse...

Uma prosa descontraída, leve, prazerosa... que bom que é ler-te, confirmo.
Quanto aos hábitos, às rotinas... todos necessitamos delas desde pequeninos... é daí que nasce a segurança para caminhar sereno apesar dos ventos por vezes fortes.

Um abraço

António Viriato disse...

Caro Amigo,

Agradeço a visita e o favor da sua opinião sobre a crítica que deixei no Sorumbático, a propósito do Saramago metido subitamente a exegeta, com o aplauso da crítica maioritariamente jacobina.

Tentei apenas contrapor outro ponto de vista, sem lhe retirar o mérito que o consagrou, na Literatura, sublinhe-se, não na exegese bíblica.

Pelo menos, desafrontei-me das palavras rudes e despropositadas de Saramago contra quem não o provocou, nem tão-pouco o incomoda.

Ao passar os olhos por esta sua casa, achei aqui uma prosa forte, de boa têmpera, certamente com futuro.

Bom trabalho, pois,com a certeza de que renovarei a visita.

Um abraço.

Sandra Botelho disse...

Caminhando por ai, me prendi ao teu blog e decidi caminhar lado a lado com a maravilha de seus escritos.
Bjos no coração!

Demóstenes disse...


Sandra Botelho,

Obrigado pela sua visita ao meu blogue.

Admirável mundo este onde uma viagem transatlântica está à distância das pontas dos dedos de um clique.

Beijinhos e volte sempre.

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