sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

O Senhor J.

O Senhor J. morreu. Era um octogenário velhaco.

E não vale a pena tentar branquear, recorrendo a eufemismos, agora que já não está entre nós, os vivos, o carácter do velho homem; nem a provecta idade da partida lhe confere repentinamente a aura de santo como é de bom tom ou politicamente correcto (como se diz agora) nestas circunstâncias. Ora este escriba é partidário do Lopes e não do Magalhães, pelo que as coisas são como são e este, no que me foi dado conhecer porque, por imposição das circunstâncias, com ele privei nos seus derradeiros anos, não era, de todo, um homem bom. Ainda assim, não raro, instilava-me pena; um homem assim, a acreditar em Gasset, só pode ter sido a determinada altura do seu percurso vítima de inusitadas circunstâncias e, amiúde, entretinha-me a efabular qual o momento exacto ou quais as circunstâncias específicas que fizeram o velho azedar. Sim, porque li, há tempos e algures, uma daquelas máximas que muitas vezes se encontram nos almanaques, esta porém, estranhe-se, atribuída ao grande Cícero, que comparando o homem ao néctar dos deuses, postulava: "os homens são como os vinhos; a idade azeda os maus e apura os bons" (e as mulheres, acrescente-se, a bem da paridade e inclusão!).

Pouco se conhece da sua vida privada - o velho esforçou-se, em vida, por a manter assim, privada. Porém, aqui no despacho, sempre correu à boca miúda, que a sua primeira e única esposa terá morrido, há várias décadas, em aparatoso acidente de viação onde este não terá sido isento de culpa; o que parece indisputável, afirmam os colegas mais velhos, é que este era o condutor do malfadado automóvel e, acrescentam - não sem tentar, em vão, ocultar uma pinga de um certo regozijo simultaneamente mesquinho e macabro - estaria fortemente etilizado no momento do sinistro. Os tempos eram outros e não consta que estes factos se tenham alguma vez dado como provados no tribunal dos homens (já a consciência do próprio, a ajuizar pelo que aconteceu depois, parece ter sido neste caso Juiz, Júri e Carrasco!). Verdade ou não este detalhe, não de somenos, já se passaram, como se disse, décadas e certo é que o velho enviuvou muito cedo e ficou com a filha bebé do casal a cargo pela vida fora. Dado este estado de coisas, não é difícil, até para o mais insensível dos mortais, extrapolar o que tal episódio traumático terá despoletado na vida do então jovem homem. Nunca voltou a casar ou sequer se lhe conheceram outras relações amorosas sérias ao longo da vida. Sabe-se também que a filha sempre viveu debaixo da asa do pai pelo que facilmente se depreende que a culpa e o remorso terão tido um peso insustentável, porém determinante, ao longo desta triste existência.

O Senhor J. foi um dos últimos paladinos de um certo mundo empresarial português entretanto extinto, ou, se ainda não extinto, quero acreditar, pelo menos decrépito e em desuso a bem da desenvoltura dos tempos. Um mundo de salas imensas de mobiliário de mogno, maciço, férreo (como férrea era a vontade das gentes de então), doravante paulatinamente substituído pelo descartável Ikea e conceito open space. Um mundo corporativo que teve o seu apogeu, especulo, algures nos anos 80 onde, na minha área de actividade que bem conheço, labutavam legiões e cada qual tinha uma posição ou tarefa muito específicas; havia até quem tivesse como papel único no tecido da firma cuidar de que não faltassem bolos e chá em horário de expediente aos demais! Qual Bogart ou Delon, fumava-se a toda a hora.

O Senhor J. não evoluiu e obstinadamente arrastou consigo bem pelo século XXI adentro os ritos e rituais de tempos idos. Sempre ao volante da sua berlina (nos últimos tempos - não terá sido sempre assim - uma façanha digna de análise escatológica!), chegava ao escritório religiosamente todos os dias às 10:00, jornais debaixo do braço, um generalista e um desportivo invariavelmente; de seguida, atravessando o escritório, atirava um lacónico "bom dia" aos presentes e depois encerrava-se no seu gabinete, folheando os jornais entre sucessivos cigarros. Por volta do meio-dia, presenciei bastas vezes outro ritual; o do Whisky, nos últimos tempos bastante aguado por meio de gelo, que o peso dos anos há muito já se fazia notar. Ainda assim, não prescindia do "diluente" como lhe chamava, "para fluidificar o sangue". Nunca soube dactilografar ou utilizar um computador;  manteve toda a vida uma secretária cuja principal, se não exclusiva, atribuição era passar a email os manuscritos daquilo que pretendia ver transmitido aos clientes internacionais. Depois de dactilografadas e transmitidas as mensagens - até há não muitos anos por fax e, mais recentemente sabe-se lá por que artes mágicas!, por  email - exigia apresentação de cópia impressa em papel que relia e equilibrava depois sobre a sua secretária em duas ou três pilhas contíguas que, com o desfiar dos meses e anos, iam tomando dimensões consideráveis numa espécie de mini-arranha-céus de papel. Até o inglês, aprendido algures lá fora nos anos 60 e 70, idioma comum no comércio internacional de que se servia para comunicar com o estrangeiro, era datado, shakespeariano, e, não raro, imperceptível para alguns!

Fui dos (muito) poucos a estar presente e participar nas suas exéquias numa lúgubre igreja no coração do Porto; o que um homem semeia em vida colhe até após o solitário acto de morrer.

Do Senhor J. resta - além de já parcas memórias que o devir do tempo se encarregará de dissipar - um retrato a óleo, de generosas dimensões, que pontifica agora numa das paredes aqui do ofício, à laia de homenagem ao co-fundador da firma. De qualquer ângulo que se olhe parece seguir-nos com o próprio olhar, constante, imutável, imperecível…

Reunião de (con)domínio

     Fim de tarde de Março, marçagão.      Soturnamente contemplo ao longe as nuvens que, neste fim de tarde, açoitadas por Éolo, cavalgam c...