terça-feira, 15 de março de 2022

A caçada

Quando eu soube que hei-de morrer, entrei imediatamente em pânico. 
Isto, se não me ilude a memória pela névoa dos anos, deve ter acontecido tinha eu uns cinco ou seis de idade quando o meu avô levou-me, pela primeira vez, à caça. Era uma manhã fria de Outono e uma fina película de cristais, depositada durante a noite, cobria as forragens do gado num lençol branco a perder de vista. O halo da respiração, doutra forma invisível, confirmava a temperatura ambiente. A cada exalação parecia que pedaços de alma se separavam irremediavelmente dos corpos. Naquela fria manhã, este cisma acontecia repetidamente diante dos meus olhos, não só a homens como também a outros animais, pelo que a minha lógica infantil logo formulou secretamente o axioma "ser que respira tem alma". É por esta misteriosa comunhão que todos se chamam animais porque providos de "anima" como viria a aprender mais tarde nas latinidades. Nem o frio arrefeceu a perspectiva de uma aventura em companhia do meu avô. Ainda o sol era um embrião no ventre das montanhas, já o leite borbulhava no fervedor suspenso nos malabarismos da trempe sobre o brasido reanimado da véspera. Antes, já a Pinta(*) tinha oferecido as suas tetas à carícia das mãos, simultaneamente vigorosas e delicadas, do avozinho. Da fonte inesgotável do úbere do meigo animal brotava diariamente, em jorros, o precioso néctar branco e morno que desjejuava miúdos e graúdos. Anos antes da pasteurização e da desnatação serem processos industriais corriqueiros, esta oblação repetia-se pelo ano fora, ao amanhecer e ao anoitecer, excepto no período imediato ao nascimento de um novo vitelo. Depois de bebido o leite, com café para os adultos, e de comida uma grossa fatia de sêmea de trigo com queijo, se o havia, e marmelada, o avô cintou-se com a cartucheira e cingiu o velho arcabuz a tiracolo. Seguimos depois pelos prados fora - o patriarca à frente, o neófito logo colado na peugada - tentando minimizar o ruído único do gelo que se quebrava, a cada passo, sob as botas. A liturgia da caça exigia estes silêncios absolutos para surpreender as presas: uma ou outra perdiz, aquáticas como patos e narcejas, as ocasionais (por migratórias) abecuinhas, às vezes um coelho... A comunhão perfeita entre os homens e a natureza era, a espaços, subitamente perturbada pelo trovão que saía da boca da caçadeira, em forma de chuva plúmbea, por vezes fatal para a passarada. Foi a seguir a uma dessas troadas, que feriu de morte uma colorida abecuinha apanhada a pastar despreocupada entre os vinhedos, que eu primeiramente tomei contacto com a morte. Até aqui sempre me haviam ocultado o fenómeno, poupando-me a velórios de vizinhos ou familiares, por meio de invenções várias. Depois do estrondo, o estúpido pássaro não mais se mexeu. Perante o meu olhar atónito, o avô encorajava-me a cobrar a presa, troféu de caça que mais tarde serviria para conforto do estômago. Ao fim de uns minutos de descrença, automaticamente saindo do transe, aproximei-me pé-ante-pé do pobre bicho e levantei-lhe do chão o cadáver ainda quente. Entre mãos levei-o à presença do avô que assistia, sorrindo, a toda a cena. Naquele momento, desejei a (im)possibilidade de odiar o ceifeiro de vidas, o assassino de pássaros, por detrás do homem. Não! Nem este episódio pôde manchar jamais a imagem imaculada que sempre guardarei do avô. Cozinhou-se o pássaro e outras presas aladas que, naquele dia, conheceram sorte idêntica sucumbindo à pontaria cada vez mais escassa do velho homem, já que a vista ia acusando o peso dos anos, falindo gradualmente; felizmente para as aéreas o avozinho não mais ser exímio atirador; infelizmente para o próprio e para mim que assistia impotente à degradação natural da carne amada e, por meio destas e doutras vivências, ia percebendo a mecânica subtil da vida. Dispostos ao redor da mesa, fez-se um invulgar silêncio de morte e, perante a minha recusa em comungar dos pássaros, o avozinho adivinhou finalmente as inquietações do meu espírito de criança. Tentou, em vão, tranquilizar-me, explicando-me o jogo de luz e sombras da vida e da morte, e a atroz engrenagem que faz, de uns, presas e, de outros, predadores. Não sei se nesse dia aprendi a lição. Sei, isso sim, que o velho homem nunca mais caçou. (*) a Pinta era uma amiga quadrúpede a quem só faltava, como dizia o avô, o dom da fala. Chamar-lhe aqui vaca seria um insulto para o nobre animal. Outras há não tão nobres e com metade das patas. Mas isso é outra história.

Reunião de (con)domínio

     Fim de tarde de Março, marçagão.      Soturnamente contemplo ao longe as nuvens que, neste fim de tarde, açoitadas por Éolo, cavalgam c...