sábado, 27 de novembro de 2010

Histórias de gente comum I - o Pereira

A notícia caiu-lhe como um murro no estômago.
Dias antes, o seu chefe chamara-o à sua presença com um seco e autoritário "oh, Pereira, quando puder, chegue aqui ao meu gabinete, se faz o favor". Até aqui nada de anormal já que, invariavelmente nos últimos tempos, se procedia a uma espécie de briefing matinal para definir estratégias de acção no seio do departamento comercial. Naquela manhã, porém, algo de sinistramente diferente pairava no ar.

Reunidos à porta fechada no austero espaço, o chefe evitava o olhar do seu interlocutor e, numa lengalenga sem pés nem cabeça, esquivava-se, contornando o assunto.
"Há quantos anos está connosco, oh Pereira?"- curioso como, nestas ocasiões, os chefes falam num plural majestático como se fossem dignitários de uma força maior, pondo-se do lado de lá da barricada.
"Faz em Dezembro 25 anos. Uma vida."
"Como sabe, caro Pereira, os tempos são de desafio e a empresa está a sofrer uma profunda reestruturação motivada pela actual conjuntura macroeconómica. Bom, indo directo ao assunto que nos trouxe aqui: o conselho de administração deliberou proceder à dispensa imediata de alguns colaboradores e o Pereira está incluído nesse lote".
"Deixa-me cá ver se percebi - recapitulou mentalmente o bom do nosso Pereira - despedido! Posto no olho da rua enquanto o diabo esfrega um olho!

Vinte e cinco anos. Vinte e cinco intermináveis anos.

De repente, imaginou a cara de desgosto da mulher e a desilusão estampada nos rostos das miúdas. Como é que iria explicar à mulher, ao chegar a casa, que a empresa, à qual dedicara tantos anos de vida, o dispensava agora com uma palmada nas costas, com sabor a chuto nos fundilhos, e promessas de fundo de desemprego? Sentiu a náusea tomar-lhe de assalto o estômago e o chão fugir-lhe debaixo dos pés numa vertigem crescente. Deixou-se cair desamparado sobre a poltrona - até aí fizera questão de permanecer vertical diante do seu interlocutor - e o chefe, apercebendo-se do quebranto do Pereira e numa réstia de humanidade, apressou-se a servir-lhe um copo de água por entre um "lamento muito".
Viu os 25 anos de carreira passarem diante dos seus olhos numa espécie de flashback regressivo: o entusiasmo do primeiro dia (o mesmo entusiasmo que se foi desvanecendo depois); a entrega apaixonada dos primórdios a qual, com o passar dos anos, foi gradualmente cedendo lugar à acomodação... pensava ter conquistado, por direito próprio, uma posição confortável dentro do departamento comercial. Como estava enganado! Com os olhos rasos de água - não, não me vou permitir chorar e perder a pinga de orgulho que ainda me resta - lamentou o facto de se ter deixado, progressivamente, vencer pelo comodismo e apatia; de não ter comparecido às acções de formação, simpósios, inúmeros cursos e congressos - ultimamente às tão propaladas sessões de coaching das quintas-feiras - que a firma patrocinara no decurso dos anos.
Agora era tarde de mais.

A sirene de uma ambulância distante cortou o frio da noite em uivos sucessivos.
Havia pr'a lá de um par de horas que o nosso Pereira vagueava pelas ruas da cidade na esperança de reunir as forças necessárias para, chegando a casa, encarar a mulher. Na sua cabeça, ensaiou o discurso vezes sem conta de modo a suavizar o peso da triste nova e assim minimizar os danos causados pelo impacto. É que nada fazia adivinhar o sucedido: estava tão certo que a besta do desemprego só batia a porta alheia... convencidíssimo que esta era claramente uma daquelas maleitas que só aconteciam aos outros como se uma invisível capa de imunidade lhe protegesse o seco corpo das balas ferinas da contrariedade.
Sem saber bem como, transportou-se até ao modesto 3º esquerdo onde adquirira o direito de viver contraindo dívida quase vitalícia ao banco; a mesma idónea instituição que anteriormente já lhe emprestara dinheiro para o Corsa comprado em segunda mão mas em muito bom estado, semi-novo, óptima relação qualidade/preço - argumentos esgrimidos freneticamente pelo vendedor; essa mesma corja de sanguessugas sem alma que, sempre que o mês sobrevivia ao salário, se apressava a recordar-lhe "tem a prestaçãozinha atrasada" (como se fosse humanamente possível esquecer, por um só minuto que fosse, tal jugo!).

Duas vezes rodou a chave sobre si própria na ranhura da fechadura. A porta escancarou-se convidando o Pereira a entrar. Encheu os pulmões de ar de tal forma que se sentiu subitamente inebriado pelo abundante fluxo de oxigénio. Depois, atravessou o hall de entrada, pé-ante-pé - pelo adiantado da hora as miúdas estariam já na cama - dirigindo-se à cozinha, onde jazia, no centro da mesa, um prato de sopa já fria. Da mulher, nem sinal. Cansara-se da espera e estava já também na cama.
Sorveu a sopa e pensou conto-lhe amanhã. Afinal tenho agora todo o tempo do mundo.
E, debruçando-se sobre a mesa, recolheu a cabeça entre os braços e começou a chorar.


Qualquer semelhança com a realidade dos dias que correm não é, infelizmente, mera coincidência.
Inicia-se com esta história um ciclo de quadros sobre a vida quotidiana que espero suscitem em quem lê alguma reflexão e se possível salutar discussão através dos comentários.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Untitled

Há qualquer coisa de inexplicavelmente irracional em arrancar-me ao conforto da lareira para enfrentar a noite escura lá fora.
Há algo de escandalosamente errado em privar-me, por vontade própria, da companhia da minha filha de três anos com o fim único de sair porta fora para correr.
Ainda assim vou sem hesitar e levo comigo todo um mundo de palavras, ideias e pensamentos. Correr tornou-se para mim tão profundamente vital como dormir ou alimentar-me. Faz agora parte de mim como o meu próprio nome.
O medo primitivo do escuro, num caminho mais sinistro ladeado de eucaliptos e ciprestes, assalta-me o espírito. A cada exalação, a brisa mentolada e fria fere-me os pulmões espetando-os como agulhas. Ao ouvir o peso das minhas passadas contra o alcatrão, os cães saúdam-me, latindo à minha passagem. Incendeiam-se-me os músculos e a voz rouca de Sir David Gilmour grita-me ao ouvido, ironicamente e em estéreo, you better run!
Estou só. Profundamente só.

As pessoas, dentro dos seus topos de gama devidamente climatizados, apressam-se a regressar a casa depois de mais um dia de trabalho. Ao ver-me, que pensarão? Pouco me importa o quão doido me acham. Ignoram o pouco que é necessário para ser-se feliz.

Naquele tempo em que os meus músculos vencem a distância, em que submeto a estrada à minha vontade férrea, sou livre.

Não há nada de mais puro e ascético que a corrida e tenho cá para mim, correndo o risco de proferir heresia ou blasfémia e consequentemente incorrer em perigo de excomunhão, que se Deus encarnasse novamente seria no corpo de um maratonista queniano.

Imagem: pormenor de vaso grego patente no Metropolitan Museum of Art - NY

domingo, 14 de novembro de 2010

Explicações

A minha mulher é um templário deslocado no tempo.
Há dias abraçou a cruzada impossível de dar explicações a um dos garotos aqui da vizinhança.
E o catraio cá vem a casa, todos os dias pela mesma hora, sábado e domingo não são excepção, cabisbaixo e contrafeito, para as explicações de português, matemática e estudo do meio que é como se chama agora ao meio-físico e social do tempo em que também eu era menino de escola.
Por sua exclusiva vontade andaria lá fora, na rua, aos chutos na bola com outros da sua idade.
Ou então, não; preferiria certamente estar a jogar computador ou playstation que os tempos são outros e os adultos de amanhã têm hoje a bola ao alcance da ponta dos dedos nos comandos dos videojogos e assim evitam correr, suar e sujar-se, e os paizinhos agradecem a poupança na conta da água e electricidade na hora de pagar as respectivas facturas. Sim, porque até em termos de consumo eléctrico, os videojogos batem aos pontos, em questões de aforro, a máquina de lavar roupa!!! E assim, para gáudio dos progenitores, os meninos estão cada vez mais mais gordinhos e rosadinhos!!! Mas isto é pano que dava para muito mais que simples mangas; dava para aparelhar uma esquadra inteirinha de naus do tempo das Índias!!!
No outro dia, plantei-me de soslaio a observar a cena: tratava-se do monstro sagrado da conjugação verbal. Em vão, a esforçada explicadora tentava incutir no pupilo interesse pelos diversos tempos verbais do passado: "vá lá, diz-me agora a terceira pessoa do singular do indicativo activo do pretérito-mais-que-perfeito do verbo amar" e o garoto, titubeante, fazia caretas de ignorância perante aquela algaraviada. Vendo o impasse da situação, arranco-me do anonimato da esquina da porta da sala em socorro do apavorado catraio e dou o empurrão inicial: "eu amara... tu amaras..." e lá se foi desfiando, ainda assim hesitante, a lengalenga da conjugação verbal.
"Rapaz, se queres conjugar o futuro tens de primeiro conhecer muito bem o passado" - interpelo-o eu na vã esperança de que a semente do interesse não caia em solo estéril.

No meu tempo (como se costuma dizer por estas bandas), as mestras da escola primária eram adeptas de outras pedagogias, hoje consideradas pouco ortodoxas e porquanto agora em desuso, mas que, à época, produziam inquestionáveis resultados.
A veneranda Dª Albina, verdadeira heroína do povo na minha aldeia - merecedora, na minha modesta opinião, de efígie condigna a erguer (quiçá um dia) no centro do lugarejo - foi uma dessas inflexíveis professoras de escola primária.
Graças aos seus esforços docentes, três gerações aprenderam o bê-á-bá da língua pátria e iniciaram-se nos insondáveis mistérios das matemáticas. Movida certamente mais pela paixão ao ensino do que propriamente pelo salário que auferia (se bem que nesses saudosos tempos este mister era assaz bem remunerado e conferia posição social respeitada e de destaque), movida pela inabalável paixão, dizia eu, que a fazia percorrer de motoreta, todos os dias de manhã - faça chuva ou sol, Inverno ou Verão - os largos quilómetros que a separavam da austera escola, como ainda hoje recorda a minha mãe. Lá dentro estavam já perfilados, à sua espera, impecavelmente aprumados nos seus bibes, dúzias de alunos sedentos de aprender. Nesse tempo, como nós meninos, éramos diferentes dos de agora!
Se bem me lembro, as quartas-feiras eram dia de exercício de ditado cujos erros ortográficos e faltas de acentuação eram severamente punidos pela execução sumária de umas quantas reguadas proporcionais, em número e devoção na aplicação, à quantidade e gravidade daqueles. Havia, porém, uma qualquer indulgência de que já não me recordo. As quartas-feiras eram, portanto, dia de terror generalizado. O aproveitamento escolar de um aluno podia medir-se na inversa medida das reguadas apanhadas ao longo do ano lectivo; quanto menos vezes se tivesse dado, em sentido literal, a mão à palmatória melhor era o aluno. Orgulho-me de ser detentor de um cadastro (quase) imaculado ao longo de toda a escola primária que é o mesmo que dizer que fui um aluno exemplar. E não havia nada de perverso ou sádico nisto; eram as regras do jogo e todos - professores, pais e alunos - as aceitávamos como tal. A professora Albina chegou até, num raro rasgo de sentido de humor, a adornar a férula com uns fios de lã a imitar cabelos e um par de furos equidistantes a fingir olhos, no sentido de amenizar o efeito que a simples observação daquele objecto de castigo provocava em alguns alunos, sem contudo lhe retirar a intrínseca autoridade.

Hoje, é com alguma mágoa que vejo a língua portuguesa, que me é tão querida, ser tão maltratada e os, já de si pouco suficientes, esforços de educadores - pais e professores - malbaratados pela concorrência desleal das omnipresentes televisão e Internet.

Mas nem tudo são espinhos neste vale de lágrimas e há que reconhecer algum mérito a esta geração de actuais alunos: manuseiam, desde o berço, a tecnologia com um à-vontade ímpar e é já vulgar ver putos em idade de escola primária a usarem o inglês, o idioma comum nesta (cada vez mais) aldeia global.

Reunião de (con)domínio

     Fim de tarde de Março, marçagão.      Soturnamente contemplo ao longe as nuvens que, neste fim de tarde, açoitadas por Éolo, cavalgam c...