Na magna sinfonia da vida, Demóstenes sempre tocou de improviso.
Inclusive nos andamentos mais marcantes da existência, como no allegro appassionato de fazer um filho ou no dolorosíssimo adagio da partida dum ente querido, sempre dispensou o fio de Ariadne da partitura.
Assim aconteceu, há não muito tempo, no dia em que o teste de gravidez ditou um peremptório positivo em duas rubicundas linhas verticais. Duas minúsculas linhas que mudam subitamente o azimute de quem quer que seja. Nesta fase do relato, romanceá-lo e dizer que, para o nosso (anti)herói, foi o dia mais feliz da sua vida, seria uma afronta tão grande à verdade dos factos como negar a ida do homem à Lua (e aqui estala talvez a polémica!). Visto agora à distância de mais de um par de anos, Demóstenes confessou-me, há dias, que confuso seria o adjectivo mais apropriado para aflorar o turbilhão de sentimentos que lhe invadiu a alma naquele exacto instante. O mancebo andou, portanto, uns dias atordoado a interiorizar a enorme responsabilidade de participar activamente na edificação de um novo ser humano no contexto, no mínimo exigente, de um mundo actual desumano e desumanizado. Ao fim de duas ou três semanas mal dormidas, de calças borradas e congeminações medrosas, gritou interiormente para si mesmo "Mostra que tens tomates e agarra o touro pelos cornos. Vá, faz-te um homem, pá!!!". Estes e outros impropérios, ditos em tom de profissão de fé, repetidos em mantras sucessivos, parecem ter sortido efeito e arrancado o meu amigo ao estado de letargia em que se encontrava.
A ideia de paternidade foi ganhando consistência na cabeça do rapaz e materializava-se a cada consulta de obstetrícia que acompanhava com os sentidos esbugalhados de quem encara, pela primeira vez, o sol da vida olhos nos olhos. Via-se, agora, já no papel honroso de pater familias, à medida que a barriga da sua companheira se ia gradualmente dilatando num invólucro de carne, receptáculo perfeito do milagre da vida a acontecer.
O dia em que a sua filha, formosíssima menina, irrompeu decidida por entre as pernas da progenitora, rasgando o véu do saco amniótico, derradeira fronteira, esse sim foi dos mais felizes da sua existência. Assistiu, em primeira fila, à laboriosa azáfama das parteiras e ao necessário sofrimento da companheira, e teve o raro privilégio de, literalmente, separar parturiente e recém-nascido ao quebrar, em decidida tesourada, o elo membranoso do cordão umbilical. Ainda hoje recorda a crueza indispensável do corte; começava ali, no exacto momento da cesura, uma nova odisseia!
Medos, tem os de toda a gente, que nisto é tão humano como os demais, ampliados numa época tão obscura como esta: que o Adamastor do desemprego bata à porta e o dinheiro ao fim do mês não chegue para os cueiros da bebé; ou que a besta da doença fira a frágil criaturinha... mas já aprendeu - confessou-me - a viver um dia de cada vez, que esta vida não está para projectos a longo prazo que, de resto, não são apanágio do nosso Demóstenes.
No outro dia, recebeu-me, em sua casa, de braços abertos e disse-me, orgulhoso, perante a visão da angélica pequena: "Para quem só toca de ouvido, até que não me estou a sair nada mal, hein!?"
Inclusive nos andamentos mais marcantes da existência, como no allegro appassionato de fazer um filho ou no dolorosíssimo adagio da partida dum ente querido, sempre dispensou o fio de Ariadne da partitura.
Assim aconteceu, há não muito tempo, no dia em que o teste de gravidez ditou um peremptório positivo em duas rubicundas linhas verticais. Duas minúsculas linhas que mudam subitamente o azimute de quem quer que seja. Nesta fase do relato, romanceá-lo e dizer que, para o nosso (anti)herói, foi o dia mais feliz da sua vida, seria uma afronta tão grande à verdade dos factos como negar a ida do homem à Lua (e aqui estala talvez a polémica!). Visto agora à distância de mais de um par de anos, Demóstenes confessou-me, há dias, que confuso seria o adjectivo mais apropriado para aflorar o turbilhão de sentimentos que lhe invadiu a alma naquele exacto instante. O mancebo andou, portanto, uns dias atordoado a interiorizar a enorme responsabilidade de participar activamente na edificação de um novo ser humano no contexto, no mínimo exigente, de um mundo actual desumano e desumanizado. Ao fim de duas ou três semanas mal dormidas, de calças borradas e congeminações medrosas, gritou interiormente para si mesmo "Mostra que tens tomates e agarra o touro pelos cornos. Vá, faz-te um homem, pá!!!". Estes e outros impropérios, ditos em tom de profissão de fé, repetidos em mantras sucessivos, parecem ter sortido efeito e arrancado o meu amigo ao estado de letargia em que se encontrava.
A ideia de paternidade foi ganhando consistência na cabeça do rapaz e materializava-se a cada consulta de obstetrícia que acompanhava com os sentidos esbugalhados de quem encara, pela primeira vez, o sol da vida olhos nos olhos. Via-se, agora, já no papel honroso de pater familias, à medida que a barriga da sua companheira se ia gradualmente dilatando num invólucro de carne, receptáculo perfeito do milagre da vida a acontecer.
O dia em que a sua filha, formosíssima menina, irrompeu decidida por entre as pernas da progenitora, rasgando o véu do saco amniótico, derradeira fronteira, esse sim foi dos mais felizes da sua existência. Assistiu, em primeira fila, à laboriosa azáfama das parteiras e ao necessário sofrimento da companheira, e teve o raro privilégio de, literalmente, separar parturiente e recém-nascido ao quebrar, em decidida tesourada, o elo membranoso do cordão umbilical. Ainda hoje recorda a crueza indispensável do corte; começava ali, no exacto momento da cesura, uma nova odisseia!
Medos, tem os de toda a gente, que nisto é tão humano como os demais, ampliados numa época tão obscura como esta: que o Adamastor do desemprego bata à porta e o dinheiro ao fim do mês não chegue para os cueiros da bebé; ou que a besta da doença fira a frágil criaturinha... mas já aprendeu - confessou-me - a viver um dia de cada vez, que esta vida não está para projectos a longo prazo que, de resto, não são apanágio do nosso Demóstenes.
No outro dia, recebeu-me, em sua casa, de braços abertos e disse-me, orgulhoso, perante a visão da angélica pequena: "Para quem só toca de ouvido, até que não me estou a sair nada mal, hein!?"