terça-feira, 27 de outubro de 2009

Pater Familias

Na magna sinfonia da vida, Demóstenes sempre tocou de improviso.
Inclusive nos andamentos mais marcantes da existência, como no allegro appassionato de fazer um filho ou no dolorosíssimo adagio da partida dum ente querido, sempre dispensou o fio de Ariadne da partitura.
Assim aconteceu, há não muito tempo, no dia em que o teste de gravidez ditou um peremptório positivo em duas rubicundas linhas verticais. Duas minúsculas linhas que mudam subitamente o azimute de quem quer que seja. Nesta fase do relato, romanceá-lo e dizer que, para o nosso (anti)herói, foi o dia mais feliz da sua vida, seria uma afronta tão grande à verdade dos factos como negar a ida do homem à Lua (e aqui estala talvez a polémica!). Visto agora à distância de mais de um par de anos, Demóstenes confessou-me, há dias, que confuso seria o adjectivo mais apropriado para aflorar o turbilhão de sentimentos que lhe invadiu a alma naquele exacto instante. O mancebo andou, portanto, uns dias atordoado a interiorizar a enorme responsabilidade de participar activamente na edificação de um novo ser humano no contexto, no mínimo exigente, de um mundo actual desumano e desumanizado. Ao fim de duas ou três semanas mal dormidas, de calças borradas e congeminações medrosas, gritou interiormente para si mesmo "Mostra que tens tomates e agarra o touro pelos cornos. Vá, faz-te um homem, pá!!!". Estes e outros impropérios, ditos em tom de profissão de fé, repetidos em mantras sucessivos, parecem ter sortido efeito e arrancado o meu amigo ao estado de letargia em que se encontrava.
A ideia de paternidade foi ganhando consistência na cabeça do rapaz e materializava-se a cada consulta de obstetrícia que acompanhava com os sentidos esbugalhados de quem encara, pela primeira vez, o sol da vida olhos nos olhos. Via-se, agora, já no papel honroso de pater familias, à medida que a barriga da sua companheira se ia gradualmente dilatando num invólucro de carne, receptáculo perfeito do milagre da vida a acontecer.
O dia em que a sua filha, formosíssima menina, irrompeu decidida por entre as pernas da progenitora, rasgando o véu do saco amniótico, derradeira fronteira, esse sim foi dos mais felizes da sua existência. Assistiu, em primeira fila, à laboriosa azáfama das parteiras e ao necessário sofrimento da companheira, e teve o raro privilégio de, literalmente, separar parturiente e recém-nascido ao quebrar, em decidida tesourada, o elo membranoso do cordão umbilical. Ainda hoje recorda a crueza indispensável do corte; começava ali, no exacto momento da cesura, uma nova odisseia!

Medos, tem os de toda a gente, que nisto é tão humano como os demais, ampliados numa época tão obscura como esta: que o Adamastor do desemprego bata à porta e o dinheiro ao fim do mês não chegue para os cueiros da bebé; ou que a besta da doença fira a frágil criaturinha... mas já aprendeu - confessou-me - a viver um dia de cada vez, que esta vida não está para projectos a longo prazo que, de resto, não são apanágio do nosso Demóstenes.

No outro dia, recebeu-me, em sua casa, de braços abertos e disse-me, orgulhoso, perante a visão da angélica pequena: "Para quem só toca de ouvido, até que não me estou a sair nada mal, hein!?"

16 comentários:

Anónimo disse...

"Mostra que tens tomates e agarra o touro pelos cornos. Vá, faz-te um homem, pá!!!".

MAS TU TENS TOMATES????(brincadeira)
IsaB

fd disse...

Os actos mais singelos, como um abraço ou um sorriso, conseguem desfazer o castelo (de cartas) mais elaborado.

Eva Gonçalves disse...

Os homens sentem muitas vezes dificuldades em se verem nesse novo papel que a vida lhes traz muitas vezes inesperadamente. Até ao nascimento...e aí, a maioria das vezes, todas as dúvidas se dissipam e até o mais macho, se desfaz em lágrimas... Parabéns demóstenes pelo lindo relato e pela sua (concerteza) linda filhota!

Malinha disse...

Parabéns pela filhota e pelo texto tão bonito em sua honra :))
bjs

Demóstenes disse...


Eva Gonçalves,

Sem um pingo de ironia ou quaisquer subreptícias intenções (até porque dificilmente conseguiria suportar os - imagino que pesados - honorários):

a limpidez de suas argutas observações, cristalizada nos comentários com que me vai honrando, fazem-me repensar a necessidade de terapeuta.

Digo isto, repito, do coração.

Mª João C.Martins disse...

E mal sabia Demóstenes, nas duas ou três semanas em que andou atordoado, que tinha razão para tal...
Grande é a odisseia de criar um filho...

Um abraço

Lídia Borges disse...

Um texto cheio de um realismo que até magoa... Porque a insegurança do tempo em que vivemos prende a felicidade em grades de obrigações maiores do que nós e não deveria ser assim.
Mas, entre dúvidas, medos e angústias, o que conta é sermos capazes de ir saltando as barreiras uma a uma, devagar, sem cair.

Parabéns!

fd disse...

Sem estar a querer sugerir nada e portanto a título de curiosidade, por estar relacionada com o tema, partilho aqui uma palavra em que hoje tropecei:

Uiofobia: (grego huiós, -oû, filho + -fobia) s. f., aversão patológica aos filhos; receio de ter filhos.

Táxi Pluvioso disse...

Espero que não lhe suceda o mesmo que ao André Sardet, e faça aquelas canções piegas, helàs, mas vendem-se, e isso é que preciso.

Brincadeiras à parte, textos muito bem escritos. Tenho que adicionar este blog aos links do meu, mas hoje não há tempo, preciso mudar de browser, fica para breve.

Venho também agradecer a visita ao meu blog. Com um nick deste, filosofia oblige, tinha que vir espreitar e desejar o bfds da praxe.

Lilá(s) disse...

Adorei o texto, parabéns por ele.
Bjs

Carmo disse...

Demóstenes o texto intenso e realista.

Parabéns

Abraço


carmo

Anónimo disse...

vim agradecer a sua visita e deparei-me com a mais realista forma de ver a vida. Não seremas todos mais ou menos assim perante a ideia de mais um rebento no mundo. Optimo texto parabéns.

Manuel Veiga disse...

li com um sorriso nos lábios...

esse Demóstenes, além dos "tomates", é um gajo porreiro!

abraço

Arisca disse...

A curiosidade foi mais forte - reconheço as minhas fraquezas. Uma delas, além da dita que, dizem, matou o gato, tenho um "fraquinho" por textos bem escritos (e isso é o mínimo que me ocorre dizer sobre este... sim, porque não sou pessoa de elogio fácil).

Se tivesse de o descrever numa única palavra, diria "certeiro"!

Bons ventos,
Arisca

CB disse...

A sinfonia da vida, alegre ou não, só se toca mesmo de improviso. E ter um filho é a maior prova disso mesmo. Mas devolve ecos de acordes divinais.

Demóstenes disse...


Princesa,

comentário de rainha!!!
(acho que já tinha usado este trocadilho)

P.S. Aprecio particularmente comentários a textos mais antigos. É sinal que este não é um blogue fast food (poderá, por vezes até, ser indigesto).

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