sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Rabiscos

Abriu os tubos de guache, vagarosamente, um por um - os olhos verde azeitona arregalados de espanto - dispondo as cores no arco-íris portátil da paleta: primeiro o azul, depois o magenta; naquele compartimento o amarelo, ali o verde, um pouco mais de preto...
Com a mãozita trémula, determinada porém, empunhou decidida o pincel e iniciou a pueril criação.
Risquito atrás de risquito, borrão após borrão, o papel foi ganhando cor e formas; uma mancha negra no centro da bizarra tela destacava-se das demais e, por isso mesmo, chamou-me imediatamente a atenção.
- Que mancha negra é essa aí, pipoquinha? - interroguei.
- É um homem, papá! - retorquiu entusiasmada.
Vendo ali uma oportunidade pedagógica sem igual, quis saber mais:
- E porque pintaste o homem de negro? - insisti.
- Porque está nu!
Aproveitei para explicar-lhe que, efectivamente, homens há-os de várias cores e feitios mas todos eles homens de igual direito e despejei mais um chorrilho de verdades la palicianas consagradas na declaração universal dos direitos do homem; tudo isto, diga-se, convenientemente exposto em versão João de Barros de modo a ser inteligível para a criança.

A inocente resposta deixou-me porém pensativo; vi na infantil observação para lá da óbvia alusão à cor da pele. E dei por mim a cogitar que, em verdade, certos homens, quando despidos do aparente polimento que lhes confere a indumentária do dinheiro ou do poder, são negros, tão negros, ou mais, que rabisco de tinta em desenho de criança de três anos. Os seus corações irremediavelmente infestados pela erva daninha do egoísmo, pela moléstia da indiferença, que encontram por estes dias de incerteza húmus favorável à sua disseminação e florescimento. (Inevitavelmente, assomam-me à mente três ou quatro desprezíveis políticos da nossa praça que confundiram serviço público com proveito próprio).

De repente, a minúscula Yorkshire Terrier irrompe desgovernada pelo improvisado atelier semeando o caos e o terror à sua passagem. Tintas e pincéis pelo ar numa inusitada fantasia policroma e, num ápice canino, o quarto vira ele mesmo uma tela gigante.
- Olha o que fizeste, Mia!!! - gritámos em uníssono.

3 comentários:

Carmo disse...

Demóstenes, excelente texto, com um final muito engraçado.
Bom fim de semana
Abraço

Malena disse...

Felizmente a pipoquinha não tem ainda a noção dessa negrura da alma que infesta tantos seres humanos!
Bom fim-de-semana! :))

maria teresa disse...

Voltaste! E com um texto muito ternurento com uma criança muito precoce:):):)
Abracinho meu!

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