quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Avô é pai duas vezes

O meu avô materno foi um gigante que errou por este mundo de joelhos.
Há pessoas assim, discretos colossos maiores que a vida, e depois há os outros, os anões que se agigantam, caminhando sobre ilusórias andas, no espectáculo circense da vida.
O avozinho nunca recorreu ao artifício das pernas de pau.

Hoje lembrei-me dele, não que tal coisa seja rara, muito pelo contrário, mas, há momentos, ao contemplar a clausura das labaredas, encerradas no moderníssimo recuperador de calor cá de casa, tomou-me, sem aviso, a saudade das frias manhãs de Outono passadas a assar castanhas na lareira de pedra da velha casa, essa sim, genuína e plenipotenciária de ostentar o nome.
Quis uma sucessão de acasos que, esta noite, eu tenha por companhia única uma gata branca e por banda sonora a nostálgica percussão da chuva, abundante lá fora. Acendi a lareira, pela primeira vez na estação, na esperança ténue de dissipar o frio causado pela ausência de vivalma e muni a mão direita de indulgente copo de malte.
E, na contemplação das chamas, ouço agora o longínquo crepitar das castanhas da minha infância, tisnadas pela imolação altruísta das cepas de videiras velhas, e lá está o homem alto, apoiado sobre um banquinho de madeira, produto das suas hábeis mãos, a remexer o brasido com um graveto e a povoar a minha imaginação pueril de histórias de bichos e quimeras de África, da África colonial que tanto amava. Façanhas e desventuras de desterrado em Lourenço Marques, como assim se chamava a capital provincial de Moçambique quando o avozinho por lá viveu. Agora que bóiam à tona da minha mente estas inefáveis memórias de infância, imprimem-se-me, em ambas as retinas, as imagens vívidas do imenso espólio de objectos, trazidos ocultados à laia de contrabando dessa África onírica, que havia na velha casa: chifres de impala convertidos em bizarros pássaros pela mão expedita de pretos, que nisto são exímios artesãos, diáfanas freiras mumificadas nas presas de marfim de um qualquer elefante abatido pelo predador branco na refrega da savana, sendo esta particular efígie sinal inequívoco de miscigenação; existiam ainda inúmeras peles de grandes felinos, de tigres e afins. O tempo encarregou-se de lhes dar descaminho. Vivem agora tão-somente nas minhas memórias.

Foi o meu avô que me ensinou a amar a terra.
"Um homem pode não ser farto de oiros e pratas, não possuir no banco a segurança de gorda conta a prazo de vários dígitos, mas pode-se considerar afortunado se conseguir arrancar, de um pedacito de terra a que possa chamar seu, o sustento frugal do pão nosso de cada dia" - repetia-me inúmeras vezes, no intervalo dos vigorosos golpes de enxada com que, carinhosamente, preparava o ventre da terra para receber o sémen do grão. Nestas pausas, eu corria industrioso a chegar-lhe o lenço branco com que enxugava o suor que lhe escorria abundante da fronte ou o cântaro de barro cru que conservava a frescura da água, amenizadora da sede.
Juntos corremos campos e montes, rios e vales; a maior parte das vezes porque a isso obrigava a labuta do campo, outras por diversão como nas raras vezes do ano em que nos levava à praia no velho Ford Taunus - que o mar era longe, o carro cansado e as economias poucas - e no caminho de regresso parávamos a saciar-nos, sob o abrigo frondoso de uma centenária árvore, com a frescura de um melão ou melancia comprados a um qualquer vendedor ou vendedeira, destes ocasionais que se encontram à beira da estrada quando a época é abundante de frutas.

Disse-te, um dia, na pureza do meu coração de menino de dez anos, que queria morrer no mesmo dia que tu. Que nos lançaríamos juntos nessa nova aventura de desbravar o desconhecido dos mundos d'além morte. Tu foste; eu, porém, fiquei. Encontrar-nos-emos um dia?

Avozinho, lá onde estiveres agora, perdoa-me a insuficiente homenagem que (e já se apodera de mim a comoção), por mais que me esforce, pecará sempre por escassa. Jamais poderá aflorar o gigante que foste aos olhos deste que para sempre te ama. E tu, avô, és das poucas pessoas que ainda arrancam baptismais lágrimas de contrição ao meu, entretanto por força de mundanas circunstâncias, empedernido coração.
Olho o teu retrato.
Choro agora.

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