segunda-feira, 5 de outubro de 2009

O homem da maratona

O dia ergueu-se, sisudo, do seu leito de estrelas e travesseiro em quarto crescente.
O rapaz, por contraste, acordou de sorriso no rosto, com a determinação férrea de quem tem uma missão a cumprir. Àquela hora, meia cidade ainda recuperava, dormindo, dos excessos da noite anterior. Escovou os dentes num compasso lento e metódico, atirou ao rosto uma mão cheia de água gélida debitada pela canalização, depois outra e ainda uma última, certificando-se assim que, com esta operação, matava qualquer resquício de sonolência. Encarou o seu próprio reflexo projectado na superfície platinada do velho espelho e passou as falanges ossudas, qual pente improvisado, pelas melenas loiras do seu farto cabelo, afagando-as em movimentos lentos de vaivém. Forrou, depois, o estômago com um frugal pequeno-almoço e saiu batendo atrás de si a porta silenciosamente. Estava pronto.

Pum! Retine nervoso o tiro de partida e os corredores, na sua ânsia de gnus, dão início ao estranho bailado de corpos, numa multiplicidade de cores, formando um caleidoscópico arco-íris de braços e pernas em constante movimento. Ninguém poderá talvez explicar racionalmente, para lá de qualquer sombra de dúvida, porque se arrancaram estes homens e mulheres ao conforto dos seus lares num tão dia agreste; alguns, como o herói da nossa história, madrugaram e deslocaram-se várias centenas de quilómetros para se congregarem nesta irmandade. Nesta comunhão silenciosa de devotos da corrida pedestre, os quilómetros sucedem-se vagarosamente ao ritmo das passadas de novos e velhos, deles e delas, de brancos e pretos. Os músculos incendeiam-se a cada palmo de estrada; o coração apressa-se a bombear a seiva vital , oxigenada pelos pulmões que servilmente se dilatam e contraem vezes sem conta num esforço maquinal de corporação de bombeiros. Sob a batuta magistral do cérebro, todos os órgãos trabalham harmoniosamente com o objectivo comum de impelir o conjunto a conquistar metro após metro. O milagre repete-se tantas vezes quantas o número de cabeças da multidão e aquela turba digladia-se paciente e ferozmente contra o mais inclemente dos inimigos: o tempo. O rapaz não é excepção. Padece agora, silenciosamente e em comunhão com os seus irmãos, as agruras da dor física provocada pela crescente exaustão. Em tempos pré-históricos, pensa, o homem caçador/recolector teve a aptidão de cobrir largas dezenas de quilómetros em suas caçadas com o mínimo de fadiga. Nós, filhos orgulhosos da Revolução Industrial, debruçados sobre os nossos dilatados ventres de condutores de sucedâneos do Ford-modelo T, perdemos progressivamente esta capacidade inata. Estes e outros pensamentos entretêm-lhe o espírito e os quilómetros sucedem-se, ritmados, desembocando na tão almejada meta.
Passara, incólume, a dura provação; lutara essencialmente contra si mesmo, o seu medo de fracasso, a sua vontade gritante de optar pelo mais fácil e tudo isto vencera com vontade de cruzado. Uma gratificante sensação de auto-realização e superação inundava-lhe agora a alma. Pela dura forja da maratona, tornara-se um ser humano melhor.
Doravante não mais seria o mesmo.

10 comentários:

maria teresa disse...

Demóstenes
digladia-se

Habituou-me a textos tão ricos que este ficou muito aquém da meta...

Pronúncia disse...

E que é a maratona, senão uma tentativa de superação dos limites?!
Gostei...

Brown Eyes disse...

Lá está a ligação passado presente. A vontade, a determinação, o querer é o que nos move mesmo em condições adversas. O que nós conseguimos quando estamos motivados a alcançar um objectivo!

Demóstenes disse...


Maria Teresa,

é o eterno problema das expectativas...

Demóstenes disse...


Pronúncia,
para mim toda a provação física (a maratona não é excepção) encerra em si mesma um profundo sentido ascético, de auto-conhecimento e edificação do carácter.

Demóstenes disse...


Brown Eyes,
Nem mais; (quase sempre) querer é poder!

S* disse...

Se queremos muito, havemos de conseguir. Nao, nao me inspirei naquela estupida obra prima chamada "O segredo". Acredito no poder do esforço.

Anónimo disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Anónimo disse...
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Anónimo disse...

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